Um dos grandes desafios da indústria farmacêutica é o transporte adequado de vacinas, biomedicamentos, hemoderivados e outros produtos que necessitam de controle de temperatura – principalmente quando ainda não existem regulamentações com diretrizes específicas nos âmbitos federal, estadual e municipal -, aliado à carência em infraestrutura e adoção e manutenção de boas práticas em todos os pontos da cadeia logística.

Da fabricação do produto até sua chegada ao consumidor final, são muitas as normas que devem ser cumpridas para garantir que a qualidade seja mantida intacta, e isso ganha ainda mais relevância quando se fala de produtos da cadeia de frio (cold chain). Ela assegura a manutenção da qualidade do produto com temperatura controlada para que seu princípio ativo e produto final não sofram alterações, comprometendo a efetividade, eficácia, estabilidade e as características físico-químicas do fármaco. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que aproximadamente 50% das vacinas produzidas em todo o mundo atingem seus destinos deterioradas, devido à quebra da cadeia de frio. A maior falha está no controle da temperatura (cerca de 40%), comprometendo a qualidade do produto e causando possíveis riscos à saúde.

“O papel da indústria está em estabelecer as necessidades de seus produtos e desenvolver soluções de acondicionamento que garantam a manutenção das características que os produtos demandam e desenvolver soluções alternativas em conjunto com parceiros devidamente qualificados e identificados para prover os recursos técnicos e conhecimento para viabilizar as operações de distribuição dos produtos da cadeia de frio. O Brasil é um país que tem uma diversidade muito grande; com isso, soluções funcionais para locais com infraestrutura desenvolvida não podem ser adotadas nacionalmente, acarretando aumento de custos para a cadeia de distribuição”, diz Emerson Lopes, gerente regional de Supply Chain e S&OP da Alcon Laboratórios.

Para um processo eficiente são necessários equipamentos e insumos adequados, como local de armazenamento com controle de temperatura; espaço suficiente para o armazenamento de todos os produtos de forma a garantir que eles estejam sendo refrigerados homogeneamente; utilização de caixas térmicas (isopor ou poliestileno) resistentes, em bom estado e que sejam capazes de conservar a temperatura interna considerando a temperatura externa; e o tempo de transporte.

“É fundamental que para a escolha da caixa térmica sejam realizados testes de validação. Termômetros ou datallogers para monitoramento da temperatura durante todo o transporte auxiliam em uma tomada de decisão rápida durante o percurso, além de serem importantes para registrar um desvio de temperatura e ajudar a rastrear a causa raiz desse desvio. Os caminhões refrigerados utilizados para transporte devem ter controle de temperatura, rotina de limpeza e não devem transportar outros produtos ao mesmo tempo. Não menos importante do que os equipamentos e insumos são as pessoas envolvidas na cadeia de frio. Elas precisam estar capacitadas e ter conhecimento sobre o que é cadeia de frio, qual sua importância, quais insumos e equipamentos devem ser utilizados e como os produtos devem ser armazenados e transportados”, comenta Mayra Moura, colaboradora da Assessoria Clínica de Bio-Manguinhos (Asclin).

Segundo Lopes, para garantir a eficácia de todo o processo é preciso controlar a demanda para que a cada embarque tenha-se o resultado do monitoramento da temperatura ao longo de toda a cadeia antes da liberação do produto para o cliente final.

“Isso é mandatório em certos procedimentos. Tudo vai depender do grau de criticidade do produto transportado. Um produto de maior estabilidade talvez não requeira um monitor/registrador de temperatura em todos os embarques; produtos mais sensíveis podem requerer este tipo de controle. Assim, as decisões de como controlar são fundamentalmente dependentes das especificações do produto transportado”, comenta.

Quando as normas de armazenamento e transporte não são cumpridas, o produto fica exposto à perda da eficácia ao longo de sua vida útil, chegando a haver a necessidade de destruí-lo. “O quanto de potência – ou eficácia – ele perde depende de vários fatores: a qual temperatura foi exposto? Por quanto tempo? Qual a validade deste produto? Ele já foi submetido anteriormente a um desvio de temperatura? Outro problema que pode ocorrer é o aumento de eventos adversos”, explica Mayra.

 

camara-fria

 Área da câmara fria 2-8°C de estocagem de soluções e meios de cultura
da Seção de Meios e Soluções (SEMES)/ Divisão de Apoio de Virais (DIAPV).
Imagem: Bernardo Portella - Ascom / Bio-Manguinhos

 

Desafios 

Em um país com dimensões territoriais tão grandes como o Brasil, o transporte de produtos com temperatura controlada é um desafio para os laboratórios, operadores logísticos, transportadoras, distribuidoras e, principalmente, para o profissional encarregado do acompanhamento e da qualificação desse processo para toda a cadeia de frio. A questão, na opinião de Lopes, é a falta de padronização, o não cumprimento de exigências legais por parte dos prestadores de serviço e a falta de efetividade por parte das autoridades.

“As exigências hoje colocadas pela Anvisa são conhecidas, mas não controladas. No sertão ou em cidades de poucos recursos, como é possível garantir a manutenção das condições de armazenagem exigidas por lei? Quem é o responsável por inspecionar estas instalações por vezes não conta com recursos para fazê-lo, o que torna a rede de distribuição mais desafiadora, visto que a indústria consegue garantir seus requisitos técnicos até certo ponto da cadeia e a partir destes pontos não mais é possível este controle”.

Segundo ele, quando traçamos um cenário da cadeia de frio no Brasil e no mundo, o que se tem é um desenho bem distinto. “A infraestrutura logística em países desenvolvidos permite uma distribuição infinitamente mais eficiente. Além disso, as condições climáticas são mais severas nos outros países, o que faz com que a infraestrutura deles seja naturalmente melhor estabelecida que a nossa. A falta de um sistema de transporte multimodal eficiente também limita muito as alternativas de transporte, deixando o modelo limitado a rodoviário e aéreo. Pensando em abrangência nacional, a falta de estradas de boa qualidade, a falta de armazéns com as adequações exigidas pela cadeia farmacêutica limitam ainda mais nossas opções, incrementando assim o custo e a complexidade deste controle”.

É frequente também ocorrerem atrasos durante o transporte, colocando a qualidade do produto em risco quando o tempo de transporte e o controle de temperatura não podem ser mantidos. Nestes casos, o produto pode sofrer uma excursão de temperatura, que é um desvio das condições de armazenamento aprovadas para um produto, qualquer que seja o tempo de duração, ao longo de sua vida útil, ou seja, desde a sua fabricação até o seu uso no último dia do prazo de validade.

Porém, vale dizer que a cadeia de frio não é de responsabilidade de uma única pessoa ou empresa; cada integrante do elo é responsável pela sua parte. Para ter maior controle durante todo o processo, a Central Nacional de Distribuição de Imunobiológicos (Cenadi), por exemplo, estuda a possibilidade de colocar um pequeno adesivo na vacina, ainda no fabricante, que acusaria desvio de temperatura. Esse desvio poderia ser observado na ponta, no momento da vacinação, mas ainda não foi colocado em prática. “Hoje, cada um se responsabiliza pela sua parte e gere seus riscos. Qualquer problema que ocorra depois da distribuição para o próximo elo o fabricante deverá ser comunicado para ciência e orientação, mas é um processo passivo, apenas para que ele tenha conhecimento”, explica Mayra.

A gestão de riscos é feita a partir do entendimento correto de toda a cadeia logística. José Eduardo Martins, gerente da Garantia da Qualidade da Hemobrás, conta que a empresa faz um mapeamento de possíveis riscos que podem ocorrer em todas as etapas do processo. “Com isso em mãos é possível analisar ponto a ponto e verificar quais são as variáveis que impactam na qualidade do medicamento. Identificadas estas variáveis, elaboramos uma matriz de riscos para determinarmos e escalonarmos estas variáveis do maior para o menor risco. Cada ponto é estudado com o objetivo de determinar ações de erradicação, minimização e/ou controle”.

Uma das preocupações da empresa está na escolha de seus fornecedores. “Trabalhamos com uma ferramenta de Qualificação de Fornecedores, onde dentre todos os pontos e fatores analisados, a prioridade é a capacidade técnica e o know how para a execução das atividades inerentes à cadeia de frio”, diz Martins.

Jair Calixto, gerente de Boas Práticas e Auditorias Farmacêuticas do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo (Sindusfarma), destaca, ainda, como outros desafios, a especificidade da cadeia de abastecimento, que é extremamente regulada pela Anvisa; o excesso de movimentações, desde a origem até o destino, por muitos dos envolvidos no transporte e distribuição desses produtos e a falta de segurança e de infraestrutura nas estradas.

 

 mayra-asclin

Mayra Moura, colaboradora da Assessoria Clínica de Bio-Manguinhos
(Asclin), fala da importância do transporte e armazenamento dos
produtos. 
Imagem: Gabriella Ponte - Ascom / Bio-Manguinhos

 

Regulamentação

A regulamentação do transporte refrigerado de cargas é uma das que mais gera preocupação no país, principalmente na indústria farmacêutica, pois é grande a demanda de produtos que necessitam de ambientes frios. Mesmo recebendo resoluções próprias da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ainda há um gap considerável de regulações que seria sanado a partir da concentração das normas em uma regulamentação única.

A agência está produzindo um guia referente à qualificação de transporte para produtos biológicos, que deve ser lançado em breve. Segundo Calixto, a tendência é que as agências regulatórias mundiais estabeleçam requisitos regulatórios cada vez mais restritos para o controle desses produtos. “Outra tendência importante é a provável harmonização das boas práticas de distribuição de produtos de cadeia fria em nível global. Especificamente sobre as tendências técnicas, existe um desenvolvimento tecnológico e científico constante dos materiais, embalagens e instrumentos utilizados no controle e na manutenção da temperatura destes produtos, trazendo uma evolução muito rápida para esse segmento”.

Atualmente, a legislação brasileira que busca normatizar a cadeia de frio está focada nos biomedicamentos. A RDC n° 55/2010 exige, conforme as alíneas a e b do inciso X, do artigo 31, que as empresas apresentem a validação de transporte, enviando a qualificação de operação e desempenho das caixas a serem utilizadas para o transporte e validação dos procedimentos de transporte do princípio ativo, do produto biológico a granel, intermediário, em sua embalagem primária, terminado, do diluente e do adjuvante (no caso de vacinas) e a qualificação de operação e desempenho das caixas a serem utilizadas para o transporte do produto biológico terminado em território nacional.

“Além disso, a RDC 38/10, que trata da importação de produtos biológicos, determina, em seu parágrafo cinco, que a empresa importadora (detentora do registro) deve possuir cadeia de transporte validada de acordo com as características de estabilidade de cada produto a ser importado e, no parágrafo seis, que a empresa importadora (detentora do registro) deve possuir registros contínuos de temperatura da cadeia de transporte que comprovem que o produto foi mantido dentro das condições de armazenamento e de transporte preconizadas pelo fabricante. Os registros de temperatura devem identificar o nome do produto, número de lote, hora e data de envio e recepção. As condições de armazenamento e transporte devem ser especificadas na Licença de Importação”, explica Daniela Marreco Cerqueira, gerente de Produtos Biológicos da Anvisa.

Com base no guia que será lançado, o tipo de sistema de transporte a ser utilizado deverá ser decidido de acordo com o tamanho do carregamento, a natureza do produto e o risco apresentado pelas flutuações de temperatura. Daniela diz ainda que a RDC n° 17/2010, que trata da qualificação de transportes de medicamentos, define o conjunto de ações realizadas para atestar e documentar que quaisquer instalações, sistemas e equipamentos estão propriamente instalados e/ou funcionam corretamente e levam aos resultados esperados.

Todas as qualificações sempre devem ser realizadas seguindo um protocolo pré-aprovado. Este protocolo deve ser bem detalhado, descrevendo os tipos de transporte (aéreo, marítimo, terrestre etc.) necessários durante toda a rota e especificando em que condições ocorrem (caminhão refrigerado, por exemplo) e por quanto tempo. “O tipo de material refrigerante utilizado deve ser informado, assim como a sua localização no sistema de transporte e a quantidade a ser utilizada”, comenta Daniela.

Calixto cita ainda as normas RDC 50/2011 e RDC 25/2013, relativas a procedimentos para realização de estudos de estabilidade para produtos biológicos; RDC 10/2011, relativa à garantia de qualidade para produtos importados, e a RDC 234/2005, relativa aos requisitos técnicos para a importação de produtos biológicos.

 

Fonte: Cristina Sanches / Labnetwork

 

 

Voltar à pagina inicial

Outras notíciasarrow-2

 

Alerta de cookies

Este site armazena dados temporariamente para melhorar a experiência de navegação de seus usuários. Ao continuar você concorda com a nossa política de uso de cookies.

Saiba mais sobre nossa Política de Privacidade clicando no botão ao lado.