O sarampo, doença que por décadas foi uma das principais causas da mortalidade infantil no país, teve seu avanço contido graças à articulação de esforços nos três níveis de atenção à saúde. Representando um desafio para a saúde pública, a doença passou a ser considerada de notificação compulsória em todo o território nacional em 1968, quando foram registrados 129.942 casos.

O consultor científico de Bio-Manguinhos, Reinaldo Menezes, explica que o sarampo é uma doença infectocontagiosa aguda e transmissível por via respiratória, com alta carga de contágio para quem ainda não teve a enfermidade ou não foi vacinado. “O tempo entre o contágio e o aparecimento dos sintomas é de aproximadamente 8 a 12 dias. A doença, no entanto, pode ser transmitida antes de os sintomas aparecerem. Depois de três dias, aparecem erupções no rosto, que se disseminam pelo corpo, além de febre, espirro, tosse e conjuntivite”, acrescenta.

Considerada uma doença grave, o sarampo tem a pneumonia, otite e encefalite como as principais complicações, além de aumentar o risco de desnutrição. Menezes ressalta que o diagnóstico, feito por exames clínicos e laboratoriais, é necessário para a pesquisa dos casos. “Faz-se um exame sorológico, que indica que a pessoa adquiriu sarampo há pouco tempo. Como não há tratamento, apenas medicações paliativas, a vacinação é fundamental”, destaca. 

 

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Consultor científico de Bio explica sintomas e complicações da doença
Imagem: Isabela Pimentel - Ascom/Bio-Manguinhos

 

 

O papel da vacina

A primeira vacina contra o sarampo foi introduzida no Brasil na década de 1960, mas, como o imunobiológico era importado do mercado internacional, sua distribuição era feita de maneira descoordenada e descontínua. Sua implementação efetiva no país só foi possível após a criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973, por determinação do ministro da Saúde Mario Machado de Lemos, com a missão de organizar e implementar ações de imunização de leste a oeste, promovendo o controle de sarampo, tuberculose, difteria, tétano, coqueluche e pólio e a manutenção da erradicação da varíola.



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Vacinas produzidas por Bio foram fundamentais para combater pólio e sarampo

Imagem: Vinícius Marinho - Multimagens 

 

 

No ano seguinte, foram realizadas campanhas em áreas urbanas de diversos estados e em virtude da dificuldade de atingir as coberturas vacinais mínimas para o controle da doença, foram intensificadas as ações em locais com baixas coberturas. No caso específico do sarampo, o PNI tinha como meta alcançar a vacinação, nas áreas urbanas do país de, no mínimo, 80% de menores de 5 anos, tendo como alvo crianças de 8 meses a 4 anos.

 

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Dados da incidência do sarampo e cobertura vacinal

Fonte: Ministério da Saúde

 


Bio e Japão: parceria pela saúde

 

Visando reduzir a dependência externa no fornecimento da vacina, o governo brasileiro começou a apoiar projetos voltados para o desenvolvimento de imunobiológicos. Por meio de um acordo de Cooperação Técnica entre a Universidade de Osaka (Fundação Biken), Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica) e a Fiocruz, em 1980, ficou estabelecida a criação de uma planta de produção da vacina sarampo em Bio-Manguinhos. O projeto foi implementado em quatro anos e o Comitê de Coordenação tinha o atual presidente do Conselho Político e Estratégico de Bio (CPE), Akira Homma, como chefe. Representando a parte japonesa, estava Konosuke Fukai, professor da Universidade de Osaka. Dezenas de peritos japoneses vieram para colaborar e acelerar o desenvolvimento do projeto. “Fazemos menção específica para o perito Terumassa Otsuka que ficou entre nós, com a família, por 3 anos, tendo inclusive aprendido português, possibilitando uma boa comunicação com os profissionais da casa”, declara Akira.

 

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Álbum com fotos da visita dos peritos japoneses ao Rocha Lima, com legendas em japonês

Imagem: Acervo do Arquivo Intermediário de Bio-Manguinhos

 

De acordo com informações da ata da reunião realizada em 18 de julho de 1983, a Cooperação Técnica japonesa para o projeto foi prorrogada por mais um ano, conforme Protocolo de Discussões, assinado pela Jica e autoridades ligadas ao governo brasileiro. O período de extensão foi de agosto de 1983 a agosto de 1984. No mesmo documento, há informações de que “o fruto do projeto tem contribuído bastante com o PNI". O fato foi destacado em texto produzido pela Assessoria de Comunicação Social do Ministério da Saúde (1983), que descreve detalhes da reunião. “Brasil e Japão assinaram hoje, em Brasília, protocolo de discussão recomendando a prorrogação de mais um ano do projeto japonês de Cooperação Técnica, firmado em 1980. O documento foi firmado pelo chefe do grupo japonês de avaliação, da Agência Japonesa de Cooperação Técnica, Konosuke Fukai e pelo presidente da Fiocruz, Guilardo Martins Alves”.

 

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Produção da vacina sarampo nos anos 80

Imagem: Acervo Pessoal / Teresinha Elisa de Brito

 

O documento destaca que a cooperação “propiciou completa transferência de tecnologia para a produção da vacina contra o sarampo”. Pelo acordo, cabia ao governo japonês o envio de peritos, a participação técnica do planejamento e montagem dos laboratórios, treinamento dos técnicos brasileiros no Japão, fornecimento de máquinas, equipamentos e insumos para preparo da vacina e participação na avaliação de campo.  A equipe liderada por Konosuke Fukai visitou o Brasil de 13 a 22 de julho de 1983, com o propósito de avaliar as realizações da cooperação no período de extensão. No mesmo ano, a demanda do Ministério da Saúde para o Programa Nacional de Imunizações (PNI) era de 15 milhões de doses de vacina sarampo. Cinco lotes experimentais consecutivos foram produzidos com sucesso e aprovados pelo Controle de Qualidade em 1982, avaliados em crianças de 6 a 12 meses, em 9 cidades do norte e nordeste.

 

Histórias e memórias

 

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Akira Homma e Mariza Lima no Fiocruz pra você - 1984 - Campanha contra Sarampo 
Imagem: Acervo Pessoal /Mariza Lima

 

A gerente do Projeto da Vacina Tríplice Viral (TVV) de Bio-Manguinhos, Mariza Cristina Lima, ingressou na unidade um ano antes e acompanhou todo o processo. “O projeto da vacina sarampo foi o meu primeiro grande trabalho em Bio. De 1988 a 1998, chefiei a produção de vacinas virais”, relembra. Lima destaca que, na época, a unidade era pequena, com aproximadamente 200 funcionários e a equipe da produção era conhecida como “família sarampo”. “Nosso compromisso permanente era produzir as doses necessárias para atender ao PNI”, declara.  A chefe da Divisão de Produção de Células (DIPRC), Teresinha Elisa de Brito, na unidade desde 1980, trabalhou com Mariza desde o início do projeto e recorda, com orgulho, que ambas participaram do primeiro projeto de transferência de tecnologia da unidade, o da vacina sarampo. “Aprendemos muito, em todas as etapas, da formulação à rotulagem. Naquela época, não imaginávamos como nosso trabalho seria importante para mudar o cenário da saúde no país”, confessa.

 

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Mariza Lima e Terezinha relembram os desafios da produção da vacina na década de 80

Imagem: Isabela Pimentel - Ascom/Bio-Manguinhos

 


Trocas e aprendizados


O processo de transferência de tecnologia foi marcado pela intensa troca de conhecimentos entre peritos japoneses, que trabalharam durante todo o processo em Bio-Manguinhos e pela ida de 30 profissionais brasileiros ao Japão para treinamento nos laboratórios de produção.  Do lado japonês, quatro peritos permaneceram em Bio por três meses, em 1983 e um, durante todo o processo.  A gerente do Projeto TVV conta que a convivência com os japoneses foi uma experiência enriquecedora para os dois lados. “Às vezes, falávamos por mímica, pois eles não entendiam inglês”, brinca. A disciplina, organização e espírito sistemático na condução dos processos, foram, para Teresinha, as principais “heranças” japonesas.

 

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Funcionários de Bio ao lado de um dos peritos japoneses

Imagem: Acervo Pessoal /Mariza Lima

Entre abril e junho de 1982, foram realizados treinamentos, adequação da metodologia de controle e produção da vacina, seguidos pela instalação da máquina de envasamento da vacina sarampo no Laboratório de Liofilização (Lalio) ,  localizado no Pavilhão Rockefeller, além da realização de testes de equipamentos. Em 1983, fixou-se a rotina de produção da vacina, com estabelecimento do esquema de teste e instalação do túnel de esterilização, no Lalio. Em 1987, foram entregues ao PNI 12,5 milhões de doses da vacina sarampo monovalente (5 doses) e em 1990 15,1 milhões. Em 2003, a vacina sarampo monovalente foi descontinuada, sendo substituída pelo tríplice viral, que combate, além do sarampo, caxumba e rubéola. Em 2004, foram entregues ao PNI 20 milhões de doses.

 

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Mariza Lima e Darcy Akemi com perito japonês no laboratório de controle da qualidade

Imagem: Acervo Pessoal /Mariza Lima


 

Brasileiros do lado de lá


As experiências adquiridas vão muito além do desenvolvimento da vacina. É o que afirma Darcy Akemi Hokama, chefe do Departamento de Controle da Qualidade (Dequa). Ela estagiava no Instituto Biológico, ligado a Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo , quando participou do processo seletivo para ingressar em Bio-Manguinhos. Devido a sua experiência com ovos spf, viajou para o Japão, em 1981, para aprimorar seus conhecimentos em Controle de Qualidade. Após dois meses de adaptação em Kanonji, ficou mais quatro em treinamento. “Foi uma experiência enriquecedora: o convívio, as informações sobre controle de qualidade e toda a troca cultural”, destaca.

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 Darcy Akemi Hokama, ao lado da equipe  de pesquisadores do Biken participando de campanha em Petrópolis 
Imagem: Acervo Pessoal /Mariza Lima

Aprender e compartilhar

Após terminar a estadia no Japão, Darcy recebeu um telefonema de Akira Homma pedindo para que viesse para Bio, acompanhada de UM perito japonês. “Foi uma despedida muito triste, pois convivemos seis meses diariamente. Depois disso, vieram especialistas de várias áreas: produção, liofilização, controle da qualidade. Durante os quatro anos previstos para o acordo, 20 peritos passaram por aqui, o último foi embora em 1996”, detalha.

Devido a experiência adquirida neste trabalho de parceria, os profissionais de Bio-Manguinhos passaram a ministrar na unidade o Curso Internacional de Controle da Qualidade da Vacina contra Sarampo, visando contribuir com o controle da doença na América Latina e África. O curso era parte do Programa de Treinamento dos Países Terceiros (TCTP), em parceria com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o Jica e o Instituto Biken.

 

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Darcy Akemi e Mariza Lima no Laboratório de Produção

Imagem: Acervo Pessoal /Mariza Lima

 

Segundo informações contidas na apostila TCTP (1989), no âmbito deste projeto, Bio-Manguinhos organizou, entre os anos de 1982 e 1992, 5 cursos sobre controle de qualidade da vacina sarampo, resultando na preparação de 44 profissionais de 13 países latino-americanos. Um dos profissionais treinados pelos colaboradores de Bio-Manguinhos foi Nora Delepiane, que atualmente compõe os quadros da Organização Mundial de Saúde (OMS).

 

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Apostila do curso TCTP - 1989

Acervo: Arquivo Intermediário de Bio-Manguinhos



Homenagem e parceria


Em 2008, ano do centenário da migração japonesa para o Brasil, Bio-Manguinhos prestou uma homenagem a Konosuke Fukai, construindo um Centro Tecnológico com seu nome. Konosuke Fukai recebeu a comenda Oswaldo Cruz, conferida pelo Ministério da Saúde.

 

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Esposa e filha de Konosuke Fukai presentes na inauguração do Centro Tecnológico - Imagem: Vinícius Marinho/Multimagens

 

O espaço, com cerca de 11,5 mil metros quadrados, é composto por um conjunto de prédios, que inclui a área de produção de vacinas virais, além do Laboratório de Experimentação Animal e dos departamentos de Controle e Garantia da Qualidade. Cinco anos depois, Akira Homma recebeu do Consulado do Japão a Comenda Ordem do Sol Nascente, Raios de Ouro com Laço.

 

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Akira Homma foi homenageado pelo Consulado do Japão em 2013
Imagem: Mariko Arai Batista - Consulado Geral do Japão

 


Até 2003, 185 milhões de doses da vacina foram entregues ao governo. De acordo com o presidente do Conselho Político e Estratégico de Bio-Manguinhos (CPE), Akira Homma, o apoio de Konosuke Fukai, foi fundamental para aprimorar os processos de produção da vacina sarampo em Bio-Manguinhos. “Este período foi muito importante para nossa história e marca a organização de Bio-Manguinhos como uma unidade industrial, dotada de capacidade de produção em larga escala”, relembra.

 

Erradicação como meta


Com foco neste objetivo, o Ministério da Saúde, elegeu a extinção da doença como uma prioridade de sua política, criando o Plano Nacional de Eliminação de Sarampo, em 1992, com as estratégias de vacinação da população entre 9 meses e 14 anos de idade, independentemente da situação vacinal anterior ou história prévia da doença, manutenção de, no mínimo, 95% de cobertura vacinal para os menores de 1 ano de idade, na rotina do Programa Nacional de Imunizações, realização de campanhas de divulgação, com o objetivo de sensibilizar a população em geral, a classe política e os profissionais de saúde, dentre outros. Em 1994, o Plano foi adotado em toda a região das Américas, priorizando a promoção de medidas de prevenção e controle da doença e investigação de casos suspeitos.

 

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Dados  da incidência anual do sarampo

Fonte: Ministério da Saúde

 

De 22 de abril a 25 de maio de 1992 foi realizada uma Campanha Nacional de Vacinação contra a doença, na qual foram imunizadas 48.023.657 crianças e adolescentes, tendo sido atingida uma cobertura de 96%.  De acordo com dados do PNI, as coberturas vacinais foram: 99% para o Norte, 95% para o Nordeste, 96% para o Sudeste, 95% para o Sul e 99% para o Centro-Oeste. Em relação aos municípios, 68% alcançaram coberturas vacinais iguais ou maiores que 95%, sendo que alguns atingiram coberturas equivalentes a 100%. Porém, 32% dos municípios ficaram com coberturas vacinais abaixo de 95%.

 

 

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Dados  da estratégia de controle e incidência do sarampo

Fonte: Ministério da Saúde

 

O esquema vacinal adotado era a dose única e com estas medidas, foram reduzidos 81% dos casos notificados: de 42.934 casos em 1991 para 7.934 casos em 1992. Durante a realização da XXIV Conferência Sanitária foi proposta pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em 1994, a meta de erradicar o sarampo em todos os países da América até o ano 2000.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, entre 2001 e 2005, foram confirmados 10 casos de sarampo no Brasil:  quatro foram classificados como importados (Japão, Europa e Ásia).  


 

Nacionalização da TVV: desafios e perspectivas


Em outubro de 2003, Bio-Manguinhos e a GlaxoSmithKline assinaram um acordo de transferência de tecnologia da vacina sarampo, caxumba e rubéola (Tríplice Viral).  A partir de 2004, foi iniciada a assimilação da tecnologia e o processamento final da vacina em Bio-Manguinhos. Ao final do processo de transferência de tecnologia, a vacina será totalmente produzida no Brasil. A gerente do Projeto TVV, Mariza Cristina Lima, conta que a vacina está na fase final de nacionalização, que deve acontecer em junho de 2015.

De acordo com Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, atualmente, nos países que conseguem manter altos níveis de cobertura vacinal, a incidência da doença é reduzida. Para que o país continue sem transmissão autóctone do sarampo, é importante a manutenção de altas e homogêneas coberturas vacinais na população infantil e a vacinação dos indivíduos que pertencem a determinados grupos de risco. A vacinação dos viajantes para países fora das Américas visa impedir que pessoas previamente não imunizadas contraiam a doença fora do país e a reintrodução.

Em 2013, foram fornecidos ao PNI 28.894.600 milhões de doses. O consultor científico de Bio-Manguinhos, Reinaldo Menezes, afirma que apesar das altas coberturas vacinais registradas hoje no país, ainda há “bolsões” de pessoas não vacinadas. Ao invés das campanhas de massa, o Ministério da Saúde tem realizado campanhas seletivas, o que exige estudos minuciosos de vigilância epidemiológica.

 

Referências


Arquivos do Acervo Intermediário de Bio-Manguinhos - Seção de Gestão de Documentos e Arquivos (Sigda) 

Portal Saúde - Situação epidemiológica do Sarampo

Organização Mundial de Saúde 

Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) 

 

Jornalista: Isabela Pimentel

 

  

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