PEQUENA site CasteloEnquanto o Ministério da Indústria busca identificar um espaço para o Brasil na cadeia global de produção de semicondutores, talvez em associação com a China, e o BNDES batalha para estabelecer taxas de financiamento factíveis para o crédito empresarial de longo prazo, o Ministério da Saúde dá os primeiros e decisivos passos para desenvolver o complexo industrial da saúde no País. Trata-se da mais clara oportunidade de constituição de um eixo de política industrial no governo Lula.

Na sexta-feira 3, a ministra Nísia Trindade Lima, da Saúde, recebeu os reitores da Unicamp, da USP e da Unesp para a definição de uma proposta de trabalho conjunto, visando ações de inovação na área da saúde, de modo a melhorar a qualidade no atendimento do SUS e reduzir a dependência do setor em relação a insumos e equipamentos importados. Credenciada pela liderança desempenhada na Fiocruz, instituição que presidiu, na formação da joint venture com a britânica AstraZeneca para a produção conjunta de vacinas e testes de diagnóstico para a Covid-19, a ministra quer desenvolver com as universidades paulistas, no entorno das instituições de saúde pública, uma parte importante do complexo público-privado integrado por empresas fornecedoras de medicamentos e equipamentos, além de prestadores de serviços.

A Unesp participa com a sua fábrica de biofármacos, a USP com um distrito de inovação e a Unicamp, com startups e seu Parque Tecnológico. O acordo deverá reunir também as universidades federais de São Carlos e do ABC, o ITA e a Fapesp, uma das principais agências de fomento à pesquisa do País. A Partir desse núcleo, a ideia é envolver instituições de ensino superior de outros estados.

O objetivo é articular de modo mais efetivo a pesquisa nas universidades públicas de São Paulo com uma política nacional para o complexo industrial da saúde, com destaque para algumas áreas críticas como imunização, terapias avançadas e tecnologias que permitam dar sustentabilidade ao SUS, entre outras. Os critérios que norteiam a nova política são os atendimentos ao bem-estar, à sustentabilidade ambiental e à produção local. "Não podemos esquecer que na pandemia morreram 700 mil pessoas no País, por falta de coordenação federal e por falta de capacidade tecnológica produtiva local. É preciso sempre ter em mente essa tragédia nacional e que a saúde se configura, agora, como a nova aposta numa trajetória de desen-volvimento", chama atenção o economista Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde.

"O nosso ponto de chegada é um SUS apoiado na produção local. O ministério estabeleceu como meta internalizar ao menos 70% da produção", destaca Gadelha. "É claro que vamos importar produtos, participar do comércio internacional. Mas é insustentável o SUS depender de importações para obter 90% dos princípios ativos dos medicamentos, aqueles que geram seu efeito terapêutico", sublinha o secretário. O déficit do setor da saúde na balança comercial disparou de 6 bilhões de dólares, em 2006, para bilhões em 2020.

Ao mesmo tempo, acrescenta Gadelha, é preciso fazer uma enorme reconstrução institucional. Em 2019, o Ministério da Saúde extinguiu o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde, articulação inédita de 14 ministérios e instituições públicas sob a coordenação da pasta, o Departamento do Complexo Industrial da Saúde e a Coordenação Geral de Equipamentos e Materiais. O trabalho da Coordenação envolvia a mobilização de ventiladores pulmonares, cruciais para pacientes da Covid em estado grave. A política pública foi desconstruída em oito anos de desmonte, retrocesso e instabilidade institucional para os investimentos. As parcerias para desenvolvimento produtivo pararam nos últimos anos. "A nossa estimativa é de que existem 30 bilhões represados para investimentos, aguardando a estabilidade institucional que permita ao gestor inovador e ao empresário inovador investirem na área da saúde", sublinha o economista. O SUS é o maior sistema público de saúde do mundo e tem poder de mercado proporcional ao seu tamanho.

A chave da proposta é ter um SUS que não seja consumidor apenas de produtos importados. É uma guinada conceitual, de política pública e de visão em relação à produção nacional. O País mostrou na pandemia da Covid, com as vacinas e os testes-diagnósticos produzidos aqui, que, em áreas com capacidades construídas, conseguiu dar resposta. Isso só não foi possível onde a capacidade produtiva foi destruída, como nas áreas farmoquímica e de equipamentos, onde a produção local já chegou a atender 70% da demanda doméstica e hoje dá conta de apenas 40%.

Hoje, a saúde representa 10% do PIB, gera 20 milhões de empregos, sendo 8,6 milhões diretos, e responde por 33% da pesquisa científica nacional. Consolidar, a partir desse potencial, o complexo industrial do setor não é tarefa simples. Além da reconstrução institucional mencionada, há enormes desafios, destaca o economista Denis Maracci Gimenez, que coordenou, no Instituto de Economia da Unicamp, o acordo de cooperação técnico-científico com a Fiocruz para realização de um levantamento das características e do potencial do setor. "Um aspecto importante é que o fato de existirem instalações montadas talvez possibilite uma grande oportunidade de avançar estruturalmente. Existem, contudo, várias limitações como uma mudança radical na organização da saúde no mundo, com o predomínio das grandes corporações, a financeirização dos grandes blocos de capital vinculados à saúde, rápidas mudanças tecnológicas e um processo de internacionalização muito forte, a partir das cadeias globais de valor. Isso cria um constrangimento estrutural para tentar montar alguma coisa com base nacional, além dos problemas internos de subfinanciamento da saúde e da pesquisa", ressalta o economista. Por outro lado, observa-se que o orçamento público da saúde, mesmo insuficiente, é gigante. Há uma voracidade do setor privado em se apropriar disso. "Se deixar sem uma política nacional, os grandes grupos financeiros que estão na saúde se apropriaram do fundo público sem estratégia nenhuma."

É importante destacar que a produção de vacinas na Fiocruz e no Butantan utilizou plataformas tecnológicas desenvolvidas durante 20 anos em parcerias de desenvolvimento produtivo entre o Estado, instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais. As duas bases tecnológicas salvaram cerca de 200 mil vidas, ressalta Gadelha.

"O arranjo virtuoso entre a AstraZeneca e a Fiocruz para o desenvolvimento da vacina contra a Covid é um exemplo de como a mobilização adequada de recursos, a garantia da demanda em grande escala, um marco regulatório minimamente favorável e a capacitação nacional prévia resultaram na defesa incontável de vidas brasileiras, com ganho de autonomia tecnológica e com significativos impactos econômicos", chama atenção o economista Rodrigo Sabbatini, professor da Facamp e participante do projeto coordenado pela Unicamp. É a prova, acrescenta ele, de que é possível fortalecer tanto o complexo industrial da saúde quanto o desenvolvimento econômico brasileiro.

Os 9 milhões de trabalhadores do complexo industrial da saúde, quase 10% da população ocupada, têm empregos com melhor remuneração na comparação com os demais, chama atenção Maracci Gimenez. Há grande inserção de mulheres e os vínculos formais são em número muito superior à média. De 2012 até 2021, enquanto o mercado de trabalho se arrastava, o emprego na saúde cresceu em 40%. Antes da pandemia, entre 2012 e 2019, cresceu 35%, enquanto o mercado em geral teve alta de 6%. "Além de ser estratégico em termos de desenvolvimento econômico e inovação, ainda gera muito emprego, e de boa qualidade." .

Fonte: Carta Capital
Imagem: Bernardo Portella

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