carlos gadelha cnsO Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho contribuiu na 332ª Reunião Ordinária do Conselho Nacional de Saúde com a exposição "Complexo Econômico-Industrial da Saúde: contribuição para a incorporação tecnológica no SUS e para o desenvolvimento soberano do Brasil". A partir desta contribuição, o coordeandor do CEE, Carlos Gadelha, redigiu o artigo abaixo:

 

"Por meio da Saúde, é possível constituir um modelo de desenvolvimento voltado às pessoas, à vida. É preciso provocar a sociedade como um todo rumo a esse entendimento. Se, até o século passado, desenvolver-se era ser capaz de produzir aço, petróleo e automóvel, no século XXI, trata-se de garantir a saúde da população de forma soberana. A grande aposta para superarmos a alta dependência externa que observamos no Brasil está, hoje, nessa área, que envolve importante base econômica, produtiva e tecnológica e pode ser tomada como novo vetor do desenvolvimento nacional.

O foco na produção em saúde é essencial para garantir o acesso universal pelo SUS. É urgente voltarmos a produzir insumos farmacêuticos e medicamentos tradicionais – vide o problema recente de abastecimento de dipirona, paracetamol e antibióticos clássicos, como amoxilina e penicilina e avançar em plataformas tecnológicas inovadoras, com vistas a produtos de alta tecnologia.

Em 2021, o Brasil gastou 20 bilhões de dólares em importações na área da Saúde o equivalente a um orçamento inteiro do Ministério – sem gerar renda, emprego, ou qualquer avanço para o país. Trata-se de um cenário que podemos reverter, certamente, incentivando a produção nacional. Durante a pandemia de Covid-19, foi possível constatar como a dependência de importações deixou o país de joelhos, sem equipamentos de proteção individual, sem vacinas, dependendo quase que totalmente de insumos farmacêuticos (IFAs) importados.

Examinando-se a distribuição da produção das quatro principais vacinas contra a Covid-19 pelo mundo, verificamos que essa produção se concentrou em poucos países – e o Brasil, graças a algumas medidas inovadoras tomadas anos atrás, pôde fazer parte desse pequeno grupo. Ainda temos uma longa estrada a percorrer. As assimetrias produtivas e tecnológicas globais na produção de vacinas mostraram-se gritantes e as desigualdades de acesso, imensas. Enquanto em setembro de 2021 os países desenvolvidos haviam vacinado 70% de sua população, o Haiti apresentava índice de 0,3% de cobertura vacinal. Comparando-se o percentual da população coberta com a primeira dose de vacina, no auge da pandemia, nos países de alta renda e nos de baixa renda, vemos que diferença é brutal: 66% contra 1,9%.

Hoje, 88% das patentes em saúde são dominadas por apenas dez países. Tudo isso nos indica o futuro de dependência e vulnerabilidade que nos espera, sem investimento em ciência, tecnologia e inovação. Uma base produtiva, tecnológica em saúde pode ser a porta de entrada do Brasil na quarta revolução tecnológica. Quem não sabe produzir, não tem tecnologia, não consegue cuidar da própria população.

É necessário destacar, no entanto, que não alcançaremos o pleno desenvolvimento econômico, tecnológico e social em uma sociedade que está se tornando primário-exportadora, com a economia baseada na extração de recursos naturais. Observando-se o mapa abaixo, de 2020, que indica os principais produtos exportados pelo país, verifica-se que estados ricos, como Minas Gerais, exportam minério de ferro; São Paulo, açúcar; Rio de Janeiro, petróleo cru. Ou seja, estamos nos tornando uma grande fazenda do mundo, em um processo involutivo, no qual o crescimento econômico passa a depender dos preços das commodities, em vez de investirmos na produção de medicamento para câncer e outras doenças crônicas, em vacinas e insumos farmacêuticos ativos.

Temos uma megaoportunidade de produção a partir do Sistema Único de Saúde, que deve ser entendido como um complexo econômico-industrial, capaz de alavancar outro tipo de economia, que mobiliza a indústria, os serviços, o sistema de informação e conectividade e a vigilância epidemiológica inteligente. A saúde envolve 10% do PIB, o correspondente a R$ 870 bilhões, e gera 25 milhões de diretos e indiretos, para darmos alguns números apenas. O que o Brasil precisa fazer em um momento de crise é investir em saúde. Não é verdade que o bem-estar não cabe no PIB. O bem-estar é, sim, fonte de crescimento do PIB. Esse é, inclusive, o entendimento que nos orienta na Fundação Oswaldo Cruz, há mais de vinte anos.

Ao defender o desenvolvimento soberano do país na área da Saúde, tomo como base nosso pensador maior, o grande economista Celso Furtado (1920-2004), para quem desenvolvimento só se justifica como processo de mudança social, para atender à necessidade humana. Trata-se de pensar a economia para vida, não a vida para a economia.

Sabemos do interesse da área econômica na área da Saúde – uma reportagem da revista The Economist, publicada em junho de 2022, mostrou que a Google está investindo pesadamente na atenção primária –, e precisamos estar atentos para não nos pautarmos pela lógica da indústria farmacêutica. Ao mesmo tempo, quanto mais negarmos o setor privado, mais ele caminhará sozinho; se, ao contrário, nos articularmos em parcerias público-privadas orientadas pelo interesse público, dando-se o comando pelo SUS, conduziremos os processos de forma estratégica.

O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) precisa atuar estrategicamente nas duas pontas em que o SUS é mais vulnerável: aquela que o mercado disputa, referente à alta tecnologia e aos produtos de alto valor;, e aquela em que, a despeito do interesse público, o mercado não tem interesse: a dos produtos negligenciados. Temos que atuar onde o mercado não atua – o Brasil precisa voltar a produzir antibióticos, penicilina, produtos para a atenção básica – e também nas áreas de grande interesse empresarial, de modo a fazermos frente à assimetria de poder que inviabiliza o acesso da população ao que tem direito. É o SUS para valer!

Para seguirmos por esse caminho, o poder de compra do Estado deve ser acionado, em diversas modalidades. É preciso dar um largo horizonte a empresas públicas e privadas para que, em parceria, possam fazer investimentos e produzir localmente, reduzindo-se a vulnerabilidade e garantindo-se a sustentabilidade do SUS. A produção de vacinas para Covid-19 na Fiocruz e no Instituto Butantan só foi possível graças a parcerias público-privadas (PDPs), estabelecidas anos atrás, para produção, respectivamente, de biofármacos e de vacina contra a gripe. Essas parcerias deram às duas instituições brasileiras a base tecnológica para que fossem produzidas dentro do país as vacinas que protegeram nossa população, resultando em 300 mil vidas salvas.

Trata-se de novos modelos de políticas públicas, que tomam o mercado brasileiro como espaço estratégico para aliar o atendimento das necessidades sociais com a geração de riqueza, conhecimento e tecnologia. Os instrumentos para explorar o poder de compra do Estado – PDPs, Encomenda Tecnológica, Offset – são vários e todos podem melhorar, mas não se pode perder de vista sua visão estratégica e sua potência.

Essas iniciativas devem ser acompanhadas de medidas importantes como a garantia de estabilidade e transparência, de forma eficiente e eficaz, e a criação de um marco normativo para apoiar aqueles gestores ousados, empreendedores e inovadores, que tomam riscos em nome do futuro, como no caso da parceria entre a Fiocruz, a Universidade de Oxford e a empresa inglesa AstraZeneca, para internalizar — isto é, trazer para dentro do país — a produção da vacina contra a Covid-19. Foi utilizada para isso a Encomenda Tecnológica, modalidade de compra em que o Estado decide correr um risco, estabelecendo parceria com uma empresa privada para aquisição de uma tecnologia ainda em fase de teste. Temos que garantir ambiente para essa aposta dos gestores na inovação.

Um time que não tem meio de campo não ganha o jogo. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde é o meio de campo entre o conhecimento, a incorporação tecnológica e o acesso. Precisaremos mobilizar a sociedade as instâncias de controle social — como o Conselho Nacional de Saúde, instância máxima de deliberação sobre o SUS — nessa necessária conformação de um modelo de desenvolvimento no qual a saúde esteja no topo, na liderança. Saúde é vida, é PIB, é emprego, é inovação, e deixa a nação de pé —não de joelhos, pedindo esmolas de vacinas.

Por fim, a importância e a pertinência do CEIS vão além do atendimento aos interesses internos de nosso país. Para atender os mercados globais – o que o Brasil faz muito bem –, doar produtos, manter acordos de cooperação, é preciso produzir localmente. O Brasil pôde assinar um acordo de cooperação técnica com Moçambique porque tinha ciência, tinha tecnologia, tinha produção.

A situação de desabastecimento e de dependência, de um lado, e o tamanho gigante do sistema econômico e produtivo da Saúde, de outro, permitem tomar a agenda do CEIS como uma das grandes prioridades da política nacional, na conformação de um macroprojeto de reconstrução nacional pela saúde. Trata-se de uma agenda estruturante, não pontual. E o lócus no qual podemos avançar é o da ciência, tecnologia e inovação, pelo acúmulo que o país já apresenta nessa área. Esse debate precisa ser tensionado como sendo de todos, não só da área da Saúde.

É importante reforçar que a visão do Complexo Econômico-Industrial da Saúde não se opõe à visão do cuidado; é o contrário: a inovação é inseparável da humanização. Cito John Maynard Keynes (1883-1946) para lembrar que “a dificuldade real não reside nas novas ideias, mas em conseguir escapar das antigas (Teoria Geral, 1936)” e que “precisamos jogar a economia para o banco traseiro da História (Possibilidades econômicas para os nossos netos, 1930)”. A economia é meio; o fim somos nós, é a vida".

 

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