“Os patógenos estão aí. É da natureza dos micro-organismos”, aponta a médica sanitarista Mariângela Simão, para ratificar a afirmação que tem feito de que uma nova pandemia acometendo o planeta, após a COVID-19, é apenas uma questão de tempo. E pouco tempo: “Afirmo que novas pandemias ocorrerão, e enquanto eu estiver viva”, diz Mariângela, 65 anos, diretora-geral adjunta da Organização Mundial da Saúde para Medicamentos e Produtos de Saúde, nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz.

À justificativa histórica para essa afirmação – a peste de Atenas, em 430 a.C., a peste bubônica que dizimou milhões de vidas, no século XIV, a gripe espanhola, de 1918 –, somam-se aspectos da atualidade: a fácil mobilidade das pessoas “que faz com que em dez horas se cruze o mundo”, os problemas ambientais, as mudanças climáticas e a invasão humana de espaços nos quais o homem não chegava, conforme cita a sanitarista, na OMS desde 2017.

Com uma trajetória voltada à atenção primária à saúde, Mariângela, “formada no SUS”, foi secretária de Saúde do Paraná e de Curitiba, sua terra natal, e diretora do antigo Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, de onde partiu para as Nações Unidas, integrando a Unaids, para trabalhar com acesso a medicamentos de pessoas com HIV, e, em seguida, para a OMS, à frente de um setor que lida com aspectos tão diversos quanto acesso, regulação, especificações técnicas e propriedade intelectual, entre outros.

“Desde o começo da pandemia, em 2020, começamos a pensar na questão do acesso aos insumos, com um trabalho voltado à garantia de estabilização das redes de suprimentos, tendo em vista o fechamento da China, que ficou em lockdown por muito tempo”, relata. “Costumo dizer que essa pandemia tornou pior o que já não era bom. Acesso sempre foi um problema”, analisa. “Esses anos foram longos, com muitos desafios diferentes, que se somaram ao trabalho que já realizávamos”.

Não havia como evitar a pandemia de COVID-19, considera Mariângela, mas havia, sim, a possibilidade de se lidar com ela de outra forma. “Precisamos usar o que aprendemos agora”, conclama, dando como exemplo a rápida disseminação do sequenciamento do coronavírus, facilitando as pesquisas para vacinas. Nesse caminho de uma maior colaboração entre os países, ela destaca o processo de formulação do Tratado Global para Prevenção e Combate a Pandemias, cujas discussões começam em março deste ano e que deverá ficar pronto em 2024. “Os governos têm que entrar nessa discussão”.

Leia a entrevista a seguir e ouça trechos no CEE Podcast.

 

No que consiste seu trabalho e de que forma lidar com a pandemia de Covid-19 impactou sua rotina na OMS?

Venho das secretarias de Saúde, estadual, do Paraná, e municipal, de Curitiba. Fui diretora do antigo Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, com uma agenda voltada a acesso a medicamentos. Então, fui formada no SUS, onde trabalhei por trinta anos, sempre na atenção primária, antes de vir para as Nações Unidas, em 2010, para o Programa de HIV/Aids. De lá, em 2017, vim para a OMS, como diretora-adjunta para Acesso a Medicamentos, Vacinas e Produtos Farmacêuticos – agora, Medicamentos e Produtos de Saúde. É uma área grande, que reúne vários departamentos. Engloba a área regulatória, a área de especificações técnicas, biológicas, farmacêuticas, diagnóstico in vitro, tecnologias assistidas, tudo fica aqui. E também toda a parte de propriedade intelectual, produção local, acesso.

Desde o começo da pandemia, em 2020, começamos a pensar na questão do acesso aos insumos, com um trabalho voltado à garantia de estabilização das redes de suprimentos, tendo em vista o fechamento da China, que ficou em lockdown por muito tempo, e é de onde vem boa parte dos IFAs (ingredientes farmacêuticos ativos). Até então, havia uma demanda estabilizada por suprimentos, por exemplo, para pacientes hospitalizados em UTI e que necessitam de respirador. Eles precisam de anestésico, relaxante muscular e opioides.

Essa demanda ficou cem vezes maior com a pandemia, à medida que os picos de casos ocorriam nos diferentes continentes. Logo no início, começou-se a desenhar que se tratava de um vírus respiratório e que era necessária, então, uma vacina. Começamos a definir um mecanismo para a alocação de vacinas e organizamos a Covax (Covax Facility – Global Vaccine Access Facility – aliança para a aquisição e distribuição de vacinas contra COVID-19 para os países de renda baixa). A OMS também teve o papel de reunir os diferentes parceiros no Act A (Access to COVID-19 Tools), como Unicef, Banco Mundial, Gavi [Aliança Mundial para Vacinas e Imunização], o que foi muito importante para que não saísse cada um para um lado. Esses anos foram longos, com muitos desafios diferentes, que se somaram ao trabalho que realizávamos. Mas contamos, hoje, com mais ferramentas.

 

Estaríamos preparados para novas pandemias? Por que devemos considerar que isso é apenas uma questão de tempo, como a senhora costuma afirmar?

É uma boa pergunta. Afirmo que novas pandemias ocorrerão, e enquanto eu estiver viva, ainda. Há um fator histórico. O mundo já entrou e saiu de pandemias ao longo do tempo. Em seu discurso na Assembleia Mundial da Saúde de novembro de 2021, o doutor Tedros [Ghebreyesus , diretor geral da OMS] citou a peste de Atenas, em 430 aC, a peste bubônica, no século XIV, a gripe espanhola de 1918 e agora a COVID-19. Os patógenos estão aí, é da natureza dos micro-organismos. Há o fato de que o mundo é muito globalizado, hoje, com uma facilidade de movimentação de pessoas que faz com que em dez horas se cruze o mundo. Há todas as questões ambientais que propiciam, a questão climática, a questão da invasão humana de espaços nos quais o homem não chegava.

 

O que houve de especial na pandemia de COVID-19 e o que esperar das próximas?

Tivemos, ao longo do tempo, vários casos do que a OMS chama de emergências de saúde pública de preocupação internacional – o mais alto nível desses fenômenos, de acordo com o regulamento internacional. O que temos de diferente hoje é que esse não foi um problema na República Democrática do Congo, como ocorreu com o ebola; foi um problema sentido nos países ricos, em todos os países. E ninguém estava preparado. Esse coronavírus – houve outros, como os que provocaram a Mers [Síndrome Respiratória do Oriente Médio] e a Sars [Síndrome Respiratória Aguda Grave], mais localizados – é de uma transmissão respiratória muito fácil. É muito plástico, muito flexível, faz mutações com frequência, obedecendo a três parâmetros importantes – transmissibilidade, virulência e facilidade de escape.

 

A OMS divulgou, em maio de 2021, uma lista de dez doenças infecciosas que podem se tornar pandêmicas. É possível saber de que natureza serão essas novas epidemias?

Não dá para saber no que vai consistir uma próxima epidemia. O que se tem é uma lista de patógenos prioritários para pesquisa e desenvolvimento e preparação de vacinas. As vacinas para este coronavírus saíram rápido, porque as plataformas estavam lá. Ainda não havia vacina de RNA mensageiro, mas já se tinha um acúmulo enorme de conhecimento para isso. Foi importante termos o CEP (Centre for Effective Practice), coalização para o desenvolvimento de vacinas para pandemias, que já existe há dez, doze anos, funcionando. No final de 2020, por exemplo, o CEP organizou um marketplace para ajudar os países quem não tinham um ou outro insumo a encontrar o que precisavam – vidro para colocar a vacina, esse tipo de coisa. A proposta foi extremamente bem sucedida. A maior parte dos países não estava preparada para esta pandemia. Tivemos sistemas quase quebrando, sistemas tradicionalmente fortes, como os do Reino Unido, Itália – estou falando de países com sistemas de saúde públicos. A pandemia afetou todo mundo.

 

O que aprendemos nestes dois últimos anos e o que podemos fazer para que novas pandemias, tão certas de acontecer, sejam mais leves, mais controláveis e menos danosas?

Do ponto de vista internacional, há uma questão muito importante. Já existe o Regulamento Sanitário Internacional [instrumento jurídico, aprovado em 15 de junho de 2007, que define direitos e a obrigação de relatar eventos de saúde pública e estabelecer procedimentos para defesa da segurança mundial], que busca uma estruturação normativa para facilitar a tomada de medidas pelos países. O Regulamento, no entanto, não foi suficiente para esta pandemia! Claro que é útil – a OMS reuniu o grupo assessor do Regulamento Sanitário Internacional, em final janeiro de 2020, e a epidemia de COVID-19 foi declarada problema de saúde pública internacional – aquele mais alto grau desses fenômenos. Tivemos, em novembro de 2021, uma Sessão especial da Assembleia Mundial da Saúde – a Assembleia é sempre em maio e, em 2022, será realizada entre os dias 22 e 28 – para discutir um Tratado Global para Prevenção e Combate a Pandemias, que deverá ser elaborado até 2024.

 

No que consiste esse instrumento?

O Tratado é o que os advogados chamam de instrumento vinculante, que os países assinam e são obrigados a implementar. Um instrumento vinculante que todos conhecem é a Convenção do Tabaco [Convenção Quadro para Controle do Tabaco, que entrou em vigor em 2005, primeiro tratado internacional de saúde pública da OMS]. Essa demorou sete, oito anos para ser negociada, e resultou em todas as importantes restrições que tivemos – proibir anúncio de televisão, aumentar impostos, fazer advertências sanitárias etc., tudo por conta de um acordo internacional. Agora estará em negociação um instrumento como esse para pandemias, criando obrigações não só para os países, como para o setor privado, para diferentes instituições. Essa negociação começa em março de 2022. A expectativa é que, em 2023, tenha-se uma primeira proposta apresentada na Assembleia Mundial de Saúde e que haja aprovação do texto em 2024. O que se pode fazer agora? Os governos têm que entrar nessa discussão.

 

Que análise a senhora faz da relação entre os países, em especial quanto à questão de patentes e à concentração de tecnologia em poucos países, dividindo-se o mundo entre os que produzem inovação e os que se restringem a produtores de matéria-prima e de dados?

No começo da pandemia, lembram?, tivemos problemas com equipamentos de proteção individual – máscara, avental, luvas. Houve uma fase inicial em que vimos países se comportando até de maneira predatória, impondo-se pelo dinheiro que tinham. A falta de um espírito coletivo foi determinante na dificuldade de acesso a equipamentos de proteção individual. Mesmo aqui, na Suíça, um país rico, na fase aguda do primeiro semestre de 2020, não havia álcool gel. Era só lavando as mãos mesmo. Para esse problema de insumos básicos houve um comportamento não adequado de alguns países de alta renda, inclusive contra outros países de alta renda. Depois, as vacinas se tornaram disponíveis, a OMS, junto com ao Gavi, o CEP, o Unicef, organizou o Covax Facility, mas tivemos muita dificuldade para os contratos serem honrados pela indústria. As vacinas entravam em quantidades extremamente pequenas, e países ricos, pagando mais, conseguiam receber antes. Costumo dizer que essa pandemia tornou pior o que não era bom. Acesso sempre foi um problema. Você tem os mercados com recursos financeiros, com acesso mais rápido e abundante do que os mercados com menos recursos. Chega-se nos países pobres, mas num momento tardio. Tínhamos a experiência com o H1N1, em que as vacinas foram todas utilizadas no Hemisfério Norte e, quando se tornaram disponíveis para os países em desenvolvimento, a pandemia havia acabado. Então, fizemos um esforço enorme para que isso não acontecesse novamente, mas vimos uma diferença estrondosa na cobertura vacinal. A estimativa é que haja 1 bilhão de pessoas na África que ainda não tomaram a vacina.

 

A partir do olhar da OMS, esse entendimento de que é necessária uma cooperação entre as nações para que todos se livrem da pandemia melhorou ao longo desses dois anos? É possível esperar um cenário mais promissor no que diz respeito a essas relações?

Já está melhorando. No segundo semestre de 2021, e mais para o final do ano, isso se tornou mais evidente. Houve mais doações, maior estabilidade nas entregas, temos agora um fluxo de doações bem mais estabelecido e a gente consegue planejar melhor. Aqueles países que inicialmente contrataram dez vezes mais doses do que necessitavam passaram a doar mais. Os países europeus já estavam doando vacinas no final do ano passado; o governo dos Estados Unidos também, entrando com um projeto consistente e de mais longo prazo, doando 500 milhões de doses da vacina da Pfizer. Então, essa solidariedade melhorou. Não é suficiente, ainda, mas melhorou.

 

Esta pandemia de COVID-19, aos olhos de hoje, poderia ser considerada evitável?

Acho que não. Houve um esforço enorme de contenção, países com diferentes estratégias. Mas vírus de fácil transmissão respiratória e com a mobilidade que temos hoje no mundo é extremamente difícil de controlar. Então, pode-se dizer que foi inevitável. A forma de lidar é que poderia ser melhor e que precisa estar melhor da próxima vez. Precisamos usar o que aprendemos agora. Teve coisas boas. A disseminação do sequenciamento do vírus aconteceu muito rápido. Semana passada, por exemplo, o Gisaid [iniciativa voltada a promover o compartilhamento rápido de dados de todos os vírus da influenza e do coronavírus], nos Estados Unidos, recebeu 400 mil amostras. Já são milhões de amostras compartilhadas.

 

A Saúde pode ser vista, hoje, como orientadora das relações entre países, não?

Esse é um ângulo muito interessante. A centralidade da saúde ficou bastante evidente nesta pandemia. Veja a Economia! A saúde se tornou assunto do FMI, que nunca deu tanta atenção a esse tema. Temos o interesse das instituições financeiras, o engajamento da Organização Internacional do Comércio, das companhias de aviação, da propriedade intelectual. O papel da saúde está mais do que reconhecido. E vimos que países sem acesso à saúde como bem público não se saíram bem.

 

A partir da pandemia, ficou mais claro compreender a área da Saúde como promotora de desenvolvimento e não como ‘gastadora’ de recursos?

A saúde está absolutamente ligada ao desenvolvimento, à economia e à manutenção do mundo. Vamos ver quanto tempo esse entendimento vai durar. O Tratado de Pandemias poderá ajudar nisso. A saúde é investimento e a OMS sempre bateu nessa tecla muito fortemente. Espero que, com o Tratado para Pandemias, esse entendimento vá ganhando consistência entre os países nos próximos anos. Muitos já entendiam, em especial, aqueles que já contavam com cobertura universal e que já entendem a saúde de outro jeito. Vamos ver se países sem sistemas públicos vão evoluir nos próximos anos para oferecer mais acesso aos bens e serviços de saúde como direito das pessoas. Que as pessoas não precisem morrer! Antes da pandemia de COVID-19, havia países em que se morria por falta de insulina, por falta de algum tipo de proteção social, por conta do entendimento da saúde como gasto, não como direito. Vamos ver.

 

Que prognósticos a senhora tem para o SUS brasileiro, a partir do que vivemos nesta pandemia, em que se evidenciou no país a relevância de um sistema público universal de saúde?

Sou muito otimista em relação ao SUS. Vivi no Brasil trabalhando no SUS tantos e tantos anos. Você vê retrocessos, mas você vê progressos também. Se não fosse o SUS, o que teria acontecido no Brasil? Quando se olha de uma perspectiva internacional, é possível observar como o Brasil é inovador por conta do SUS, de inúmeras formas. Estamos trabalhando na OMS em uma iniciativa relacionada a acesso a medicamentos para câncer em crianças. A sobrevida de crianças com câncer em países sem estrutura de saúde, sejam de baixa renda, sejam de renda média e alta renda, é um horror. No Brasil, os indicadores de sobrevida dessas crianças são iguais aos de países ricos. Ganhos que são motivo de orgulho para a população brasileira.

 

E o que falta para o SUS tenha mais progressos do que retrocessos?

Os desafios do SUS são diferentes de estado para estado no país. Os princípios estão lá, mas os desafios são diferentes. Evidentemente, há a questão do subfinanciamento, um problema que atinge o SUS e atinge os países ricos, preocupados com a sustentabilidade de seus sistemas de saúde. Não há uma receita para o Brasil, apontando que falta isso, isso e aquilo. O SUS tem os mesmos princípios, a mesma organização, mas o desempenho é bastante diferente de estado para estado. Há que se trazerem os estados com estrutura mais precária a um patamar melhor e garantir que os estados que estão mais à frente continuem nesse patamar de atendimento, com promoção, prevenção, vigilância epidemiológica e tudo mais.

 

Em relação à Assembleia Mundial da Saúde que se realizará em maio de 2022, que expectativas se pode ter no que diz respeito a se alcançar mais equidade entre os países e a um bem sucedido processo de formulação do Tratado para Pandemias?

Há um grupo de negociação intergovernamental que se reunirá até o começo de março e que deverá trazer para a Assembleia Mundial da Saúde o esboço de um documento indicando como será o processo até 2024, quando o tratado terá que estar pronto para aprovação. Há questões bastante polêmicas. A questão do acesso aos produtos de saúde, por exemplo, é sempre polêmica, envolve questões de propriedade intelectual, questões de transferência de tecnologia, de preço. Imagino que essas questões aparecerão com mais evidência no ano que vem, na medida em que o texto esteja mais conformado. Há também uma questão relacionada à autonomia nacional, que é sempre sensível. O Tratado criará obrigações para os países, e esse é um ponto do multilateralismo muito importante. O Brasil é muito cioso da sua autonomia. É importante que se olhe a possibilidade de uma nova pandemia sob a perspectiva não de país a país, mas de uma resposta coletiva global. E é aí que a coisa pega.

 

Ouça o podcast.

 

Fonte: Eliane Bardanachvili. Imagem: Kjpargeter, Freepik.

 

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