A pandemia da COVID-19 foi um dos principais temas de duas reuniões que atraíram a atenção do mundo e da região. Se na 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas, chefes de Estado e de Governo debatiam os efeitos da doença, no 59º Conselho Diretor e 73ª Sessão do Comitê Regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para as Américas, organizado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ministros da Saúde discutiam como obter uma distribuição mais equilibrada das vacinas. Com vários pontos em comum, as agendas dessas duas reuniões foram o tema do seminário Política, saúde e pandemia: Agendas da ONU e da Opas, organizado pelo Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) na última quarta-feira (29/9). O evento apontou a necessidade de corrigir problemas presentes e se preparar para ameaças futuras.
Convidada a participar do seminário, Socorro Gross, representante da Opas no Brasil, destacou que neste momento de pandemia, a reunião do Conselho Diretor deixou claro que a saúde é um elemento fundamental para o desenvolvimento sustentável da região. Entre as 13 resoluções adotadas para reforçar as políticas sanitárias nas Américas, ela destacou algumas. Pela primeira vez se discutiu como aumentar a capacidade de pesquisa desenvolvimento e produção local para melhorar o acesso a vacinas e medicamentos, diante de um “mercado que não foi solidário”; foi discutida a necessidade de revitalizar os imunizantes como um bem público, assim como reforçar estratégias de comunicação para aumentar a confiança nas vacinas, diante das ondas de fake news.
Vacinas de RNA e craques em campo
Um dos pontos altos da reunião da Opas foi a escolha de dois centros para produção de vacinas com base no RNA, um na Argentina e outro no Brasil - neste caso, a Fiocruz. A escolha, explicou Socorro Gross, se deve à capacidade demonstrada pela Fundação nos últimos 40 anos na produção e desenvolvimento de imunizantes. “Vimos a capacidade de crescimento e desenvolvimento de produtos para saúde”, observou. A reunião destacou também a necessidade de ver a saúde como uma questão única, que integre a saúde humana, ambiental e dos animais.
Em seus comentários, o pesquisador sênior e assessor do Cris Luiz Augusto Galvão destacou o interesse pelo tema da vacina sento retomado 30 anos depois, assim como a volta dos Estados Unidos às discussões globais, com a posse do presidente Joe Biden no início do ano. “Para um time ganhar, todos os craques devem estar em campo. E esse craque estava faltando”, observou Galvão.
Reprovados em ética
Para introduzir o tema da Assembleia Geral das Nações Unidas, o coordenador do Cris/Fiocruz, Paulo Buss, passou o vídeo de abertura com o discurso do secretário-geral da ONU, em que António Guterres faz um alerta para que o mundo acorde, pois está “à beira do precipício”, enfrentando “uma cascata de crises”. Guterres destacou que apesar de a ciência ter desenvolvido rapidamente uma vacina contra a COVID-19, faltou vontade política e houve desconfiança e egoísmo. Como resultado, “a maioria da população dos países ricos está vacinada, enquanto 90% africanos ainda esperam a primeira dose. Passamos no teste de ciência, mas fomos reprovados em ética”, disse Guterres.
Ex-ministra da Defesa e das Relações Exteriores do Equador, Maria Fernanda Espinosa, que anos atrás presidiu a 73ª Assembleia Geral da ONU, pontuou que nem a ONU nem o seu Conselho de Segurança conseguiram se reunir rapidamente para dar uma resposta à crise da COVID-19. Os recursos recebidos foram bem menores do que os solicitados, e muitos Estados agiram unilateralmente, com fechamento de fronteiras e concentração de vacinas. “É preciso redesenhar o sistema multilateral para responder a emergências”, declarou em um vídeo enviado para o seminário.
Problemas também trazem oportunidades, disse Maria Fernanda Espinosa, que propôs o aumento do orçamento para operações da ONU, assim como a criação de um fundo para emergências; um mecanismo de coordenação das Nações Unidas com instituições financeiras multilaterais que possam ativar esse fundo; e uma reforma ou potencialização da OMS, com recursos para responder ou prevenir futuras epidemias. “A OMS deve ser a autoridade mundial de resposta sanitária, coordenando e liderando as operações, e também em emergências climáticas, na crise de refugiados e outras emergências que fogem ao mandato do Conselho de Segurança”, defendeu.
Esperança versus otimismo
Ao comentar o assunto, o diplomata, pesquisador sênior e assessor do Cris Santiago Alcázar, fez uma análise crítica da Assembleia Geral, indicando que a Agenda 2030 como saída e a equidade na vacinação como um primeiro passo. Ele ressaltou que vários fóruns mundiais recentes tiveram resultados modestos, com vontades políticas não se transformando em ações transformadoras. “Guterres tem esperança e por isso apresentou uma agenda comum", disse. Ele ressaltou que para vencer os vazios apontados pelo secretário-geral em questões como paz, clima, desigualdades sociais, de gênero, digital e geracional, é necessário criar pontes. “É preciso fortalecer a governança global, ter foco no futuro, fazer um novo contrato social e renovar a ONU”, disse. “Ele propõe uma Cúpula do Futuro, mas essa não era a ideia em 2015 [quando as metas do milênio foram aprovadas]?”.
“Guterres disse ter esperança, mas esperança é diferente de otimismo. Esperança é o que se agarra à promessa e tem quase um caráter religioso. Setenta e cinco anos depois de nos livramos de uma guerra mundial, o mundo continua conflituoso. A conclusão lógica é que não há esperança. O que nos resta é sermos otimistas”, concluiu Alcázar. No dia 13/10, ocorre mais uma edição dos Seminários Avançados em Saúde Global e Diplomacia da Saúde, com o tema Segurança Alimentar e Pandemia.
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Fonte: Cristina Azevedo, da Agência Fiocruz de Notícias. Imagem: Rawpixel, Freepik.