Confira artigo dos profissionais de Bio-Manguinhos Akira Homma e Beatriz Fialho publicado originalmente no Informe do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz):

 

"A pandemia da Covid-19 é um desastre global de saúde, hoje com mais 178 milhões de casos e 3,7 milhões de mortes. Quase um décimo de casos ocorreu no Brasil e já são 500 mil mortes. No enfrentamento desta situação, a alta dependência de insumos estratégicos para a saúde foi escancarada, não só pelo Brasil, mas pela maioria dos países em desenvolvimento. Além dos inúmeros problemas sociais, econômicos e políticos, também tem havido uma discrepância nas políticas de contenção da disseminação do coronavírus.

No cenário de vacinas, sua produção, disponibilização e acesso tem recebido atenção especial. Até o momento, mais de dois bilhões de doses de vacinas contra COVID-19 foram aplicadas no mundo, mas o ritmo da vacinação está sendo muito desigual entre os países. Segundo o levantamento do site Our World in Data, os Estados Unidos aplicaram mais de 300 milhões de doses e já teriam atingido mais de 70% da população acima de 18 anos com pelo menos uma dose. A Índia e o Brasil aparecem em seguida em quantitativo de doses aplicadas, tendo administrado respectivamente mais de 240 Mi de doses e 75 Mi de doses. A China já vacinou mais 500 milhões de pessoas e espera vacinar 40% da população adulta até junho. Importante destacar que China e Índia são os dois países mais populosos do mundo.

Apesar de vários países já terem começado a vacinar, há uma grande concentração de vacinação nos países desenvolvidos e que estão adotando o nacionalismo das vacinas. A maioria dos países ricos firmaram acordos de compra antecipada de volumes de duas a cinco vezes o tamanho da sua população. Outro fator crítico oriundo do nacionalismo foi a proibição de exportação por esses países, de vacinas e de ingredientes necessários à sua produção. Isto fez com que muitos países ficassem sem vacina e sem matérias-primas, inclusive países como a Índia, que é o maior produtor de vacina do mundo. Ou seja, uma enorme crise de desabastecimento de vacinas provocada pelos países ricos. Mas também mostra claramente que a capacidade de produção global não é suficiente para atender todo mundo de uma hora para outra. A respeito do acesso equitativo na recente reunião do G7, que aconteceu entre os dias 11 e 13 de junho, os países mais ricos aprovaram a iniciativa de disponibilizar 1 bilhão de doses de vacinas contra COVID-19, metade desse quantitativo até o final de 2021, o que infelizmente não atende as necessidades dos países mais pobres do mundo.

Esta pandemia vem demonstrando ao mundo quão crítica é a dependência de poucos produtores globais de produtos acabados, insumos e equipamentos. Mostra a importância do investimento continuado em ciência, tecnologia e inovação e na capacidade industrial. Países mais avançados, como EUA, Reino Unido, Alemanha, foram capazes de mobilizar rapidamente recursos para investir na aceleração do desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19. Países emergentes como China, Índia e Rússia também investiram no desenvolvimento de vacinas logo no início da pandemia. Outros países em desenvolvimento como o Brasil, Argentina e o México não conseguiram acompanhar o mesmo ritmo. No caso dos países mais pobres, estes passaram a contar com um importante aliado, o Covax, iniciativa da OMS para fornecimento de vacinas aos países mais pobres e em desenvolvimento. Embora a vacinação nesses países já tenha iniciado, ainda está muito aquém do ritmo necessário.

O cenário pandêmico e altamente complexo reacendeu debates antigos sobre o estabelecimento de capacidade de produção local ou regional de vacinas em países em desenvolvimento, e que tem sido discutido em vários fóruns, há décadas. Uma das primeiras iniciativas foi o projeto Sireva da Oas, na década de 1990. Depois, foi criado o Children Vaccine Initiative que trouxe o debate no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). E houve o reconhecimento internacional da importância do binômio Vacinas & Vacinação. A Gavi (Global Alliance Vaccine) foi criada em 2000, para levar as vacinas para os países mais pobres do mundo. A Gavi recebe investimentos de vários países e instituições como a BMGF.

Já no século XXI, ocorreram novos debates sobre a importância da produção local, assim como o impacto das patentes na saúde pública. Em 2001, a assinatura da Declaração de Doha no âmbito do acordo Trips, patrocinado pela Organização Mundial do Comércio (OMC), enfatizou a importância de evitar que o direito de propriedade intelectual continuasse sendo uma barreira ao acesso a medicamentos. Em 2008, durante a 61a Assembleia Mundial da Saúde, a produção local e a transferência de tecnologia apareceram como fatores fundamentais para promover a inovação, construir capacidade tecnológica e melhorar o acesso a vacinas. Em 2017, uma emenda no Trips passou a permitir que países com baixa ou nenhuma capacidade produtiva pudesse importar genéricos de países onde os produtos estão patenteados, seja com base em licença voluntária ou compulsória junto aos detentores. Mais recentemente, em maio de 2021, durante a 74ª Assembleia Mundial da Saúde, foi reiterada a importância de produção local de medicamentos e vacinas e o waiver [suspensão] de patentes em casos de emergência de saúde pública.

No mesmo mês, instituições como OMS, Unicef, Unais, Unido, The Global Fund e Unctad se juntaram e publicaram um posicionamento interinstitucional, dando mais peso a esse debate e mobilização, que serão ponto central de um encontro mundial sobre produção local de vacinas na Etiópia, nos dias 21-25 de junho de 2021, reunião patrocinada pela OMS.
Um importante esforço que vem sendo feito nesse sentido, também coordenado pela OMS, é o fomento à criação de redes de produção e transferência de tecnologia baseada na plataforma de RNA. É uma iniciativa recente de amplitude global para constituição de redes regionais visando acesso a uma tecnologia de fronteira.

A produção local ou regional é importante para assegurar o rápido acesso às vacinas de forma equitativa, além de criar a capacidade científica e tecnológica na região. Para tanto, é necessário: definição política do(s) governo(s) quanto à produção regional; obtenção da tecnologia de terceira geração para produção; facilitação no uso das patentes, acesso às tecnologias e know-how; garantia de vultosos investimentos contínuos de longo prazo; e sustentabilidade de longo prazo das operações de produção. A existência de recursos humanos com conhecimento profundo nas diversas áreas envolvidas na produção de vacinas é também essencial.

É importante considerar que a produção de vacinas é muito complexa. São várias as etapas e requerem profissionais com conhecimentos específicos, que vão desde a questão de mercado, gestão de projetos, produção, controle de qualidade e operações de produção. Além disso, é uma produção altamente regulada e exige aplicação das normas de boas práticas de fabricação, boas práticas de qualidade, boas práticas clínicas, normas de biossegurança, entre outras. Também requer ingredientes de alta qualidade, certificados, na maioria importados, pois a produção de vacinas é altamente globalizada.

Nesse contexto, é necessário definir as plataformas tecnológicas para produção de diferentes vacinas, a escala de produção industrial visando ao menor custo de produção das vacinas; programas de formação de pessoal qualificado para gestão, produção, qualidade, operação e outras. É altamente relevante a busca da competitividade tecnológica, sobretudo pelas mudanças rápidas das tecnologias. Para isso, torna-se essencial estabelecer parcerias tecnológicas, e atividades de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação bem como a existência de um sistema regulatório funcional no país ou região.

Se considerarmos que a construção e entrada em operação de uma nova planta industrial levará de três a seis anos, a atual pandemia terá sido controlada e a vacina que será produzida deverá ser utilizada para próxima epidemia. É preciso definir como sustentar uma atividade altamente custosa, cujos produtos não têm utilização e mercado.

Há muito ainda para aprender com a pandemia atual e com as vacinas já desenvolvidas, como otimizar sua produção, disponibilização e acesso, bem como o desenvolvimento das próximas gerações de vacina. É importante ter dados sobre a duração da proteção das vacinas e a efetividade das vacinações, os impactos na transmissão do vírus, a segurança de longo prazo, e eficácia contra novas variantes. Para tanto, é fundamental a colaboração global, o compartilhamento de dados, a adoção de ensaios padronizados. Um repositório central de dados clínicos, gerenciado pela OMS, seria neste caso um recurso-chave para suportar o desenvolvimento de vacinas contra COVID-19.

As vacinas e vacinações continuarão a ser um dos instrumentos de maior importância para a prevenção da COVID-19 e das próximas pandemias".

 

Autores: Akira Homma e Beatriz Fialho. Imagem: Bernardo Portella.

 

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