cooperacao sul sulA cooperação entre os Estados do chamado Sul Global foi duramente afetada pela pandemia de COVID-19, sofreu retrocessos por questões políticas e ideológicas nos últimos anos, mas tem potencial para ajudar essas mesmas nações a superarem a crise sanitária com uma recuperação sustentável. Essas foram algumas das reflexões lançadas no seminário Cooperação Sul Sul, diplomacia da saúde e pandemia, que o Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz) promoveu em 23 de junho.

Mediado por Regina Ungerer, médica e pesquisadora do Cris/Fiocruz, o webinário veio na esteira da 20ª sessão do Comitê de Alto Nível da Cooperação Sul Sul, ocorrida entre 1 e 4 de junho e que foi presidido pela embaixadora María del Carmen Squeff, representante permanente da Argentina nas Nações Unidas. Coube justamente à embaixadora argentina abrir o seminário, trazendo as conclusões da reunião.

“A cooperação entre os países do Sul Global foi afetada negativamente pela pandemia, que aprofundou problemas estruturais nos países em desenvolvimento”, disse a embaixadora em um vídeo gravado. "Mas reconhecemos o potencial que a cooperação Sul Sul tem na superação das dificuldades atuais, principalmente na resposta à pandemia. Não digo substituindo a cooperação tradicional entre os países desenvolvidos e aqueles em desenvolvimento, mas devemos contar e garantir o apoio dos países desenvolvidos e de todos os parceiros em desenvolvimento através de uma aliança de múltiplos agentes.”

Apesar de a expressão “cooperação Sul Sul” ser relativamente nova, essa modalidade é antiga, como lembrou Regina. Já foi chamada de Assistência Técnica de Ajuda aos Países Necessitados, houve o compromisso de cooperação mundial acertado na Conferência de Bandung, em 1955, e nos anos 1960 havia a Cooperação Técnica Internacional, depois conhecida como cooperação horizontal. Mas ganhou forma com a criação do Escritório das Nações Unidas para a Cooperação Sul Sul (UNOSSC) e o Plano de Ação de Buenos Aires (Bapa).

Justiça social e retrocesso

Para Anne-Emanuelle Birn, professora da Dalla Lana School of Public Health, na Universidade de Toronto, Canadá, as raízes da cooperação Sul Sul na América Latina remontam ao século 19. Numa análise "histórico-crítica”, ela destacou que “poderíamos pensar no latino-americanismo, no bolivarianismo, e no panamericanismo como processos históricos dessa coordenação”. Ela lembrou ainda ações no século 20, como a cooperação cubana na reconstrução do sistema de saúde da Argélia após a independência e a presença de médicos chineses na África desde os anos 70. "A cooperação Sul Sul é uma continuidade dos padrões da assistência Norte Sul ou são novas relações solidárias?”, questionou Anne-Emanuelle, ressaltando que essa cooperação só vai ser uma alternativa para o mundo se for orientada pela justiça social, de forma a reduzir assimetrias.

Já a colombiana Viviana Muñoz Telles, coordenadora do Programa de Saúde, Propriedade Intelectual e Biodiversidade do South Center, uma organização intergovernamental, chamou a atenção para a falta de solidariedade internacional na pandemia, em particular por parte dos países desenvolvidos. Isso resultou na dificuldade de operação do Covax, mecanismo que deveria facilitar o acesso às vacinas. "Muitos países são de renda média, e a maioria dos mecanismos de cooperação da saúde global se baseiam nessa distinção estabelecida pelo Banco Mundial. Com isso, muitos países da América Latina não conseguiram se beneficiar dos preços mais baixos que poderiam ser negociados através do Covax”.

Para ela, o fortalecimento da cooperação na América Latina é uma questão complexa. “Fica claro que houve um retrocesso na integração regional, com reflexo na integração da saúde pública. Há razões históricas, mas a questão ideológica está na base dessa desintegração”, disse. Ela destaca que houve uma falta de coordenação na resposta à pandemia, com “esforços isolados e insuficientes". “A Unasul tinha 12 países, mas a iniciativa foi abandonada. Perdeu-se o que havia sido conquistado, como o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (Isags), que realizava trabalhos importantes, como conseguir compras conjuntas e preços mais acessíveis”.

Copo meio cheio

O embaixador Ruy Pereira, diretor da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), por outro lado, fez um contraponto ao ver uma revalorização do multilateralismo no enfrentamento à pandemia. Só que agora esse esforço na cooperação regional em saúde estaria se materializando por meio da Secretaria Geral Ibero-americana (Segib). Ao comentar a experiência do Brasil, Pereira lembrou que no ano passado a ABC recebeu um reforço orçamentário de cerca de US$ 6 milhões para o apoio ao enfrentamento à COVID-19 nos países em desenvolvimento. “Isso beneficiou 25 países em desenvolvimento na América Latina, Caribe e África”, explicou. A saúde e a agricultura concentram o maior volume de iniciativas de cooperação brasileira. No momento, são mais de 700 projetos em andamento em mais de 70 países.

O embaixador lembrou que a Fiocruz é a grande parceira da ABC no setor de saúde, com projetos como a Rede Global de Bancos de Leite Humano. Pereira destacou ainda a atuação do Brasil junto aos países africanos de língua portuguesa, como a instalação de uma fábrica de medicamentos em Moçambique, da qual a Fiocruz participa. Sobre as cooperações triangulares — que prefere chamar de “trilaterais”, para não parecer que alguém “está na ponta de cima” —, lembrou da aliança com o Japão para o tratamento da tuberculose na África. “Vejo o copo meio cheio, e não meio vazio”, disse.

Coube a Paulo Buss, coordenador do Cris/Fiocruz, contar a experiência da Fiocruz na cooperação Sul Sul, algo que vem desde a sua criação. “A Fiocruz tem no seu DNA essa cooperação. Entendemos que a saúde não é só uma questão biológica. Por isso chamamos a nossa cooperação de estruturante”, explicou. “A sustentabilidade técnica e financeira é importante, e temos enfatizado a formação de recursos humanos”.

Muito dessa cooperação e troca de conhecimento se dá por redes, e Buss destacou que quatro secretariadas pela Fiocruz são hoje reconhecidas pela Segib como redes ibero-americanas: a dos Institutos Nacionais de Saúde, de Bancos de Leite Humano, de Escolas de Saúde Pública e de Educação Técnica em Saúde. Além disso, o coordenador do Cris/Fiocruz lembrou que a Fiocruz tem seis centros designados colaboradores pela OMS: Saúde Global e Cooperação Sul-Sul; Políticas Farmacêuticas; Saúde e Ambiente; Educação de Técnicos de Saúde; Leptospirose; e Bancos de Leite Humano.

Buss concluiu com “uma reivindicação”. No início do mês os chanceleres do Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) decidiram criar um centro de pesquisa e desenvolvimento de vacinas. “Dada a situação de a Fiocruz ser um grande produtor de vacinas do sistema público federal, e pertencer ao Ministério da Saúde, nós reivindicamos ser o ponto focal desse centro virtual", disse, lançando a ideia. E trouxe ainda um desafio: sugeriu que Brasil, México e Argentina, que produzem a vacina AstraZeneca/Oxford, trabalhem juntos para suprir a necessidade de imunizantes da América Latina. "Vamos trabalhar para que a saúde funcione como uma ponte para superar diferenças políticas e ideológicas”, sugeriu Buss.

 

Assista à íntegra do evento.

 

Acesse o especial sobre coronavírus do site de Bio-Manguinhos

 

Fonte: Cristina Azevedo, da Agência Fiocruz de Notícias. Imagem: Divulgação.

 

Alerta de cookies

Este site armazena dados temporariamente para melhorar a experiência de navegação de seus usuários. Ao continuar você concorda com a nossa política de uso de cookies.

Saiba mais sobre nossa Política de Privacidade clicando no botão ao lado.