seguranca sanitaria globalOs apelos crescentes para a definição de um novo Tratado de Pandemia, abordando as lacunas na governança global quanto à segurança da saúde ganharam força no Painel Independente para preparação e resposta à pandemia (Independent Panel on Pandemic Preparedness), lançado em 11/05/2021, mas merecem ser vistos com cautela: o debate emergente rapidamente se concentrou em questões de estrutura e formas – um tratado das Nações Unidas ou uma convenção-quadro sob da OMS –, bem como em questões de processo – quem tem voz e como as negociações continuarão. Não se deve perder de vista, no entanto, que as discussões do tratado são uma oportunidade para repensar o paradigma da segurança global da saúde que moldou a atual resposta internacional à pandemia COVID-19.

Esse é o alerta dos pesquisadores Paulo Buss, do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris) da Fiocruz, Sakiko Fukuda-Parr, do Programa de Graduação em Assuntos Internacionais da New School, Nova York, e Alicia Ely Yamin, da Harvard Law School em Massachussets, no artigo O tratado pandêmico precisa começar repensando o paradigma da segurança sanitária global, publicado no periódico britânico BMJ Global Health, em 03/06/2021.

O texto refere-se à iniciativa de líderes de 23 países, mais a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 30/03/2021, de apoiarem a criação de um tratado internacional que ajudaria com emergências de saúde futuras, com regras rígidas de compartilhamento de informações. O tratado visaria, ainda, garantir acesso universal e igualitário a vacinas.

Buss, Fukuda-Parr e Yamin apresentam cinco razões pelas quais consideram que “o paradigma prevalecente é antitético ao propósito central de preparação e resposta a uma pandemia global”. A primeira razão refere-se ao entendimento de que a segurança global da saúde precisa se concentrar na segurança das pessoas, não nas fronteiras nacionais. Os autores levam em conta que houve um reenquadramento das doenças infecciosas, que passaram a ser tomadas como ameaça à segurança nacional, com consequente busca por se defenderem as respectivas fronteiras, em detrimento da saúde humana. Os autores citam o apelo original de 25 líderes políticos, emitido em 30/03/2017, que enfatizou saúde para todos e segurança sanitária dos indivíduos. “Ou seja, a segurança sanitária como parte da segurança humana”, consideram.

O segundo ponto a que os autores se referem trata do multilateralismo versus políticas nacionais autônomas. Eles destacam interdependência como fundamento para a ação multilateral, na forma como enfatizaram tanto o relatório do painel quanto o apelo dos líderes políticos. “A rápida disseminação de variantes [do novo coronavírus] mostra a tolice, assim como a imoralidade, de colocar o interesse nacional acima da ação global combinada”, escrevem. “Nas estratégias de defesa nacional, o interesse mútuo dos Estados é reconhecido, mas não está em primeiro lugar como deveria nas emergências de saúde pública”, apontam, lembrando que “ninguém está seguro até que todos estejam seguros”.

Como terceira razão, o artigo considera os arranjos institucionais para a segurança global da saúde, que precisam “se basear nos princípios fundamentais dos direitos humanos e nas normas específicas juridicamente vinculativas dos tratados que os países já ratificaram”. Conforme observam, não é suficiente “colar a linguagem dos direitos humanos em um tratado pandêmico” ou integrar os direitos humanos no trabalho das agências internacionais, sem abordar as desigualdades estruturais entre os países na governança para a saúde global.

Em quarto lugar, destacam o paradigma que toma como implícito que as pandemias emanam das regiões mais pobres do mundo e ameaçam a saúde e o bem-estar das pessoas nas áreas mais prósperas, um paradigma que “precisa ser descolonizado”. E, por fim, como quinta razão, situa-se a geografia da COVID-19, que deve nos fazer questionar os critérios que avaliam a preparação para uma pandemia. Eles ponderam que, até o aumento de casos de Covid-19 na Índia, a partir do início de 2021, a incidência global e as mortes pela doença estavam concentradas na América do Norte e Europa Ocidental. Enquanto Estados Unidos e Reino Unido encabeçavam a lista, países considerados mal preparados, como Butão ou Laos, tiveram poucas mortes causadas pela COVID-19.

O artigo destaca, ainda, os desafios referentes aos monopólios farmacêuticos, que retêm direitos de propriedade intelectual, ao “nacionalismo da vacina” e à “falta de inoculação global”, que prolongarão a pandemia, retardarão a recuperação econômica e levarão a danos à saúde e aos meios de subsistência em todo o mundo. “A coisa mais importante que um tratado de pandemia poderia fazer para criar uma segurança de saúde global genuína com foco na segurança humana é exigir o compartilhamento de tecnologias e know-how em futuras pandemias”, finalizam.

 

Acesse a íntegra de O tratado pandêmico precisa começar repensando o paradigma da segurança sanitária global.

 

Acesse o especial sobre coronavírus do site de Bio-Manguinhos

 

Fonte: Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. Imagem: Nearxiii, Freepik.

 

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