variantes coronavirusEntrevista com o pesquisador da Fiocruz Amazônia Felipe Naveca explica a importância da vigilância genômica desenvolvida pelo SUS no momento em que o país bate novo recorde de óbitos em decorrência da COVID-19. O pesquisador também fala sobre as características da nova cepa do vírus Sars-CoV-2 surgida em Manaus, a variante designada como P.1, associada a casos de reinfecção por COVID-19 no estado, e defende a necessidade de medidas de isolamento social mais restritivas para conter o avanço do vírus e evitar o surgimento de novas mutações, com potencial para tornar o controle da pandemia ainda mais difícil.

 

EPSJV/Fiocruz: Fale do papel da Fiocruz Amazônia no sequenciamento dessa nova cepa que foi identificada em Manaus. O que se sabe sobre ela, qual a sua origem, seu grau de transmissibilidade, e qual é o risco que existe em relação à perda da eficácia das vacinas contra a COVID-19?

Felipe Naveca: Nós estamos sequenciando coronavírus desde o primeiro caso, em março do ano passado. Nós submetemos um artigo na semana passada que conta a história toda da vigilância genômica do coronavírus do Amazonas, desde o primeiro caso. Dentro disso, nós não tínhamos nenhuma informação nem perto da variante P1 até novembro, nada que fosse nem similar. Quando, no dia 10 de janeiro, os pesquisadores do Japão deram o alerta de que tinham encontrado algo muito diferente em pessoas que tinham passado pelo Amazonas, isso chamou atenção e nós fomos comparar os dados que eles tinham obtido. E realmente nada apontava para isso até novembro. Nós conseguimos confirmar o que o dado epidemiológico dizia. As pessoas tinham passado pelo Amazonas e nossos dados genéticos confirmaram que a origem da P1 era a linhagem 28 que circulava no Amazonas. No outro dia nós tínhamos um experimento em andamento para sequenciamento de um caso suspeito de reinfecção, e aí já apareceu a variante P1 exatamente igual à sequência obtida no Japão, e já causando reinfecção. A coisa foi muito rápida naquele período, de um dia para o outro as informações já mudavam, e hoje nós temos três casos de reinfecção confirmados por P.1 no Amazonas. Três mulheres que tiveram doença leve na segunda vez, felizmente, mas foram casos de reinfecção. E duas delas chamaram muita atenção. Uma pelo fato de que a paciente tinha feito teste de anticorpos uma semana antes, mais ou menos, e tinha dado positivo, ou seja, ela tinha anticorpos, e mesmo assim foi infectada; e outro caso foram apenas 92 dias [após a primeira infecção]. Ou seja, provavelmente teria anticorpos, era muito cedo para ter perdido. Isso sugere que a P1 possa estar escapando dos anticorpos. A gente ainda não tem certeza disso, tem experimentos em andamento no IOC e também em Oxford, junto com o pessoal da AstraZeneca, para entender isso melhor.

Nossos dados genéticos apontaram para um possível surgimento entre o dia 15 de novembro e o dia 4 de dezembro, e justamente a amostra mais antiga que nós conseguimos identificar é do dia 4 de dezembro. Então, isso também bate com as estimativas, não conseguimos identificar antes disso. Nós desenvolvemos um teste de PCR em tempo real para ajudar no screening dessa amostra, para não ter que tudo ir para o sequenciamento, que é mais caro, mais demorado, mais laborioso. A gente consegue fazer uma triagem com uma ferramenta de PCR em tempo real que nós desenvolvemos para as variantes mais importantes. Então, ela detecta a P1, a variante do Reino Unido e a variante sul-africana, porque elas têm uma mutação em comum. E aí nós começamos a usar esse teste pra screening, e hoje nós temos mais ou menos 800 amostras testadas do Amazonas, e com isso percebemos que foi aumentando ao longo do tempo o percentual de pessoas infectadas com a P1. Na primeira semana, foi 5%, depois passa a 17%, 40%, 60% e hoje a gente está perto de 80% das amostras detectadas para P1. Hoje ela praticamente domina a circulação do Sars-CoV-2 no Amazonas.

 

EPSJV/Fiocruz: O que é a vigilância genômica e qual o seu papel numa pandemia como essa?

Felipe Naveca: A vigilância genômica seria a incorporação das informações genéticas ou de genomas inteiros dentro do que é a vigilância em saúde de uma maneira geral. Hoje nós fazemos a vigilância de eventos ou de agravos, não só baseados em dados como data de coleta ou por onde o paciente passou, mas incluímos também dados genéticos que corroboram isso. Usamos a informação presente dentro do genoma dos patógenos, como uma assinatura, para aquilo que a gente quer afirmar. Por exemplo, a maioria das variações de um genoma de patógeno, as mutações que a gente sempre fala, não tem uma consequência de tornar um vírus mais ou menos infeccioso, mais ou menos grave. Elas são fenômenos que acontecem e vão se acumulando no material genético desses vírus. Mas a vigilância genômica, por exemplo, utiliza essa informação para rastrear se esse vírus passou por São Paulo, por Brasília, por onde ele passou até chegar ao Amazonas.

Um outro ponto é que quando nós fazemos a análise de um genoma de um patógeno, principalmente de um patógeno como o Sars-CoV-2, que era algo realmente novo para a humanidade, nós, comunidade científica, conseguimos ver se um teste de PCR, que é o mais utilizado hoje, por exemplo, precisa ser adaptado, corrigido, porque uma mutação atrapalhou no diagnóstico.

A vigilância genômica também nos permite isso. E também vai nos permitir identificar eventos como o surgimento de uma variante com mutações importantes, mutações que realmente alteraram a estrutura do vírus de maneira a torná-lo mais transmissível, que foi o que aconteceu em Manaus.

 

EPSJV/Fiocruz: Qual é a estrutura disponível hoje no Brasil para desenvolver a vigilância genômica?

Felipe Naveca: A vigilância genômica hoje é executada por alguns laboratórios de referência. A Fiocruz é laboratório de referência nacional para vírus respiratório e sarampo, no IOC [Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro], mas também em outras unidades, no Amazonas, e em Pernambuco, por exemplo. E junta-se a isso uma rede oficial: o Instituto Evandro Chagas, no Pará e o Instituto Adolfo Lutz em São Paulo. Essas são as estruturas diretamente ligadas à rede de vigilância de vírus respiratórios que já existiam, e que passaram a fazer também do Sars-CoV-2. Há ainda alguns Lacen [Laboratórios Centrais de Saúde Pública] que se estruturaram para fazer essa vigilância genômica, como, por exemplo, na Bahia e em Minas Gerais, e também algumas universidades. Há uma rede do Ministério de Ciência e Tecnologia fazendo isso. Tudo isso se soma para que a gente tenha uma rede de vigilância.

Claro que no Brasil ela ainda é bastante incipiente, se nós formos comparar com Inglaterra e Estados Unidos, que já fazem isso há anos e têm investimento maciço. Mas o Brasil hoje responde por mais da metade das sequências da América Latina, então a gente também tem que contextualizar dentro de um enfoque regional. Mas a ideia é que nós cada vez mais consigamos ampliar essa rede de vigilância para poder trazer essa informação mais rápido.

 

EPSJV/Fiocruz: Quais as principais dificuldades que você vê para o desenvolvimento da vigilância genômica no SUS hoje?

Felipe Naveca: O primeiro ponto é que praticamente todos os insumos utilizados para vigilância genômica são importados. Os grandes fabricantes estão nos Estados Unidos ou na Europa, então a gente tem uma dependência desse tipo de insumo, que não vai resolver agora, mas é algo que a gente precisa começar a pensar, pelo menos a médio e longo prazo. A gente deveria ter pelo menos a possibilidade de ter fabricação no Brasil de alguns insumos estratégicos, mas não tem.

 

EPSJV/Fiocruz: Por exemplo?

Felipe Naveca: Os insumos do sequenciamento propriamente dito são algumas enzimas. Tudo bem que muita coisa é patenteada,mas tudo isso é produzido fora do país. Se eu for comparar, por exemplo, com um instituto de pesquisa semelhante nos Estados Unidos, se ele não tiver esse produto hoje, vai ter no dia seguinte; eu vou ter daqui a um mês. Esse é o primeiro ponto. Não estou nem falando de dinheiro, estou falando de logística mesmo. E eu teria em 20 dias se estivesse no Rio ou em São Paulo e teria em 30 dias estando no Amazonas. Ainda tem uma logística interna que também é complicada.

O segundo ponto nós sentimos na pele, por exemplo, quando eu ganhei um projeto para fazer esse trabalho. O câmbio do dólar acho que era menos de R$ 4 e hoje é R$ 5 e tanto. Se nós temos os insumos todos importados, eu perdi uns 30%, 40% do meu poder de compra por causa do câmbio, porque eu recebi em real, mas compro algo que é vinculado à taxa de câmbio do dólar. Pensando ainda que hoje existe uma demanda mundial para isso, e quando você coloca o peso de Reino Unido e Estados Unidos, eles vão comprar numa escala muito maior. Em alguns momentos a gente teve dificuldade até de receber insumos porque a demanda mundial estava tão grande, principalmente no início da pandemia, que não chegava, simplesmente não tinha. É outro ponto importante que a gente precisa pensar, vinculado a essa dependência. Não só de incentivar algumas coisas de desenvolvimento no Brasil, mas de tirar essa dependência, porque isso é uma questão de soberania num momento como esse. Isso pesa bastante quando a gente pensa em comparar com outros países. A Inglaterra faz 200 vezes mais sequenciamento que o Brasil , mas o investimento é 200 vezes maior também.

 

EPSJV/Fiocruz: Como as restrições orçamentárias no SUS ao longo dos últimos anos têm afetado a vigilância genômica especificamente?

Felipe Naveca: É difícil dizer, porque a vigilância genômica, do tamanho que está hoje, só começou com o Sars-CoV-2 no Brasil. A gente já faz isso há anos para dengue, Zika, mas nada perto do que a gente está fazendo hoje. Há alguns anos a gente falava de sequenciar um pedaço do vírus, e aquilo já era ótimo, a gente conseguia ter informações com aquilo. Hoje a gente está falando, por exemplo, de sequenciar genomas inteiros do coronavírus, que é três vezes maior do que o da dengue. Hoje, praticamente ninguém fala em fazer sequenciamento parcial, até porque, como a gente está precisando entender melhor esse vírus, as mutações vão aparecendo ao longo do genoma inteiro, não só numa região. O mundo inteiro tem investido em fazer genomas inteiros do vírus para que a gente consiga entender isso melhor.

O que eu quero dizer é que, hoje, além de a gente estar fazendo genomas inteiros, estamos fazendo de algo que é três vezes maior. Mas isso se deve a um avanço científico nessa área. É algo que veio para ficar e a gente tem que estar mais estruturado para outras situações como essa. A gente tem que lembrar que em 2002 apareceu o primeiro Sars-CoV-2, por isso esse é o 2. Ele teve um impacto forte na Ásia, chegou a ter casos no Canadá, nos Estados Unidos, mas claro que nada nem perto dessa situação de hoje. Mas foi o primeiro evento que mostrou que um coronavírus tinha um potencial de causar uma pandemia. Depois a gente teve o Mers-CoV, de 2012 para 2013, que foi bastante limitado, mas com uma letalidade altíssima. Ou seja, em menos de 20 anos nós tivemos três eventos importantes de emergência de um coronavírus e, provavelmente, esse não vai ser o último. Então, temos que estar mais bem preparados para identificar rapidamente, isolar os casos o mais rápido possível para que ele não transmita. Temos que pensar que do ponto d,e vista de saúde pública, o objetivo não é impedir que isso aconteça, que é praticamente impossível, mas identificar da maneira mais precoce e conseguir conter.

 

EPSJV/Fiocruz: Nessa semana ganhou destaque a movimentação de alguns governos estaduais para pressionar pela adoção de medidas de isolamento social mais rígidas face à escalada do número de mortes por COVID-19 no país, que voltou a bater recorde, e a iminência do colapso no sistema de saúde em vários estados. Até que ponto medidas mais restritivas de isolamento social poderiam ter freado esse processo de mutação que levou ao surgimento da nova cepa em Manaus?

Felipe Naveca: Não fizemos em nenhum momento um lockdown mesmo, para valer, em nenhuma região do país. Então é isso: quanto mais casos você tem, mais mutações, e maior a possibilidade de surgir uma variante do vírus. E foi o que aconteceu na Inglaterra, onde o surgimento dessa variante se deu logo após as férias de verão, quando houve uma queda no distanciamento. Agora a gente está vendo o surgimento de duas variantes ainda não classificadas no mesmo nível das outras três, mas já classificadas como alerta, que são uma variante de Nova Iorque e outra da Califórnia, nos Estados Unidos. Isso mostra mais um exemplo de que onde você tem muita transmissão do vírus podem surgir variantes assim.

A gente não pode atrasar demais a adoção dessas medidas, lembrando que a nossa vacinação ainda está muito no início, e quanto mais tempo demorar, mais pessoas infectadas teremos, e vai ser cada vez mais difícil contornar a situação.

 

EPSJV/Fiocruz: E quanto à eficácia das vacinas frente às novas cepas?

Felipe Naveca: Tem resultados ainda muito preliminares. Saiu uma pré-publicação agora sobre isso, mas com um número muito pequeno de amostras avaliadas, não dá para ter muita confiança quando você faz um tipo de análise com um número de amostras muito pequeno. A gente acredita que o somatório dos resultados que vierem daqui para frente vai nos dar essa certeza. Mas se nós pensarmos que a nossa variante P1 tem pelo menos três mutações muito importantes iguais às da África do Sul, e na África do Sul houve uma queda de eficiência das vacinas, não imagino que nós vamos ver um cenário diferente. A questão é quanto vai cair a eficácia das vacinas.

 

Acesse o especial sobre coronavírus do site de Bio-Manguinhos

 

Fonte: André Antunes, da EPSJV/Fiocruz. Imagem: LMMV e LVRS/IOC/Fiocruz e Nulam, Acervo IOC/Fiocruz.

 

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