O projeto de vigilância do novo coronavírus em esgotos de Niterói, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, teve resultados publicados no periódico Water Research, uma prestigiada revista científica internacional. Os achados destacam o uso da metodologia como um sistema de alerta precoce para o surgimento de novos casos de COVID-19, permitindo ações de saúde pública e medidas de prevenção mais rápidas. A publicação contempla o período de abril a agosto de 2020, quando foram coletadas 223 amostras. O projeto soma mais de 400 coletas. A iniciativa é da Fiocruz, em parceria com a prefeitura do município e a concessionária Águas de Niterói.
O monitoramento tem como base a eliminação do coronavírus nas fezes das pessoas infectadas, o que faz com que o patógeno possa ser encontrado no esgoto. Além de verificar a presença ou ausência do vírus em tubulações e estações de tratamento de esgoto (ETEs), os pesquisadores analisam a quantidade de material genético viral presente nas amostras. Os dados são utilizados para produzir mapas de calor, caracterizando a transmissão nas diferentes regiões da cidade. O município disponibiliza as informações para a população através do portal Acompanhamento dos Casos de Coronavírus (COVID-19) Niterói.
“A partir do momento em que foi identificada a presença do coronavírus nas fezes, estudos sobre epidemiologia baseada no esgoto foram iniciados em diversos países. Em Niterói, conseguimos implantar o projeto no começo da pandemia e observamos que a metodologia é capaz de apontar a dispersão do vírus no ambiente, contribuindo para subsidiar as estratégias de enfrentamento das autoridades de saúde. A cooperação entre os laboratórios da Fiocruz, a Prefeitura de Niterói e a concessionária Águas de Niterói foi fundamental para esse resultado”, afirma Marize.
Um dos exemplos da eficácia da metodologia foi a identificação de transmissão oculta da COVID-19 na comunidade Boa Esperança, em Piratininga, Região Oceânica da cidade. Na segunda semana do monitoramento, o vírus foi detectado em tubulações de esgoto da localidade, onde ainda não havia registro oficial de casos. A partir do resultado, equipes do Programa de Saúde da Família foram às ruas para encontrar possíveis infectados, por meio da identificação de pessoas com sintomas e realização de testes diagnósticos. Ações para conter a disseminação da doença foram implantadas, e a população recebeu orientações sobre o agravo.
"Nessa pandemia, nos deparamos com o inusitado e não havia parâmetros para a gestão. O monitoramento do esgoto expandiu a base de evidências científicas. No início, em abril de 2020, funcionou como um alerta sobre a chegada do vírus aos territórios da cidade. Hoje, é mais um parâmetro que quantifica a carga viral do vírus presente nos esgotos sanitários de cada um dos pontos de coleta, permitindo assim, uma comparação regionalizada com o número de notificações dos casos. Os dados são sistematicamente lançados em um painel virtual, de acesso público. A transparência dos dados contribui para que a população possa acompanhar a evolução da história natural dessa nova doença”, comenta a diretora de Atenção à Saúde da Fundação Estatal de Saúde de Niterói (Fesaúde/Niterói), Stefania Soares.
Liderado pelo Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC/Fiocruz, o projeto tem a colaboração do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo, também do Instituto, e do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz). Na Prefeitura de Niterói, a pesquisa conta com a cooperação das Secretarias Municipais de Saúde; de Planejamento, Orçamento e Modernização da Gestão; e de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Sustentabilidade; além do Sistema de Gestão da Informação (SIGeo Niterói).
Evolução da pandemia
De abril a setembro, o monitoramento contou com coletas semanais de amostras em duas estações de tratamento de esgoto e dez pontos na rede coletora. Considerando a demanda da Prefeitura por informações, foram analisados pontos nos bairros de Icaraí, Vital Brazil, Santa Rosa, Camboinhas, Itaipu, Barreto, Engenhoca, Sapê, Ititioca, Várzea das Moças e Rio do Ouro, assim como nas comunidades do Morro do Palácio, Preventório, Cascarejo, Morro do Estado, Boa Esperança, Caramujo, Vila Ipiranga e Maceió.
“Os locais de coleta foram estabelecidos em conjunto com a Secretaria Municipal de Saúde, que apontou as áreas de interesse para o monitoramento, incluindo regiões populosas da cidade e comunidades com maior vulnerabilidade. O apoio da empresa de saneamento nos permitiu rapidamente identificar os melhores pontos para a amostragem e assim produzir dados para subsidiar ações em localidades específicas. Esse foi um diferencial do projeto”, destaca a engenheira sanitarista da ENSP/Fiocruz e autora do estudo, Camille Mannarino.
De acordo com os pesquisadores, a vigilância do esgoto vem refletindo a evolução da pandemia em Niterói. Em abril, 42% das amostras foram positivas para o Sars-CoV-2. Já de maio a junho, quando ocorreu o primeiro pico da doença na cidade, a taxa de positividade ficou acima de 90%, alcançando 100% em algumas semanas. O índice caiu a partir de julho, chegando a 50% no começo do agosto. Após o relaxamento de medidas de distanciamento social, os números voltaram a subir. Na última semana de agosto, o vírus foi encontrado em 75% das amostras. Em novembro, durante o segundo pico de casos, a pesquisa voltou a detectar o Sars-CoV-2 entre 90% e 100% das amostras.
Desde dezembro, os registros de casos e mortes e a taxa de ocupação de leitos hospitalares por Covid-19 vêm caindo em Niterói. Porém, a detecção do coronavírus no esgoto permanece em patamares elevados. Na última semana do ano passado, 100% das amostras foram positivas para o SARS-CoV-2, e a carga viral média, considerando os 12 pontos de coleta, foi a segunda maior registrada desde o início do levantamento. Em janeiro, a concentração de vírus detectada no esgoto caiu um pouco, mas o patógeno ainda foi encontrado em 80% a 90% dos pontos pesquisados.
A coordenadora da pesquisa afirma que alta carga viral no esgoto em contraponto com os poucos casos registrados pode indicar a necessidade de ampliação de testes, maior número de assintomáticos ou pessoas com doença leve, que não procuram o serviço de saúde. “A presença do vírus nas amostras aponta que ele está circulando na população. Mas a vigilância do esgoto deve ser sempre considerada como um indicador complementar, junto com outros dados relacionados à doença”, ressalta Marize.
Segundo a virologista, a mudança nos pontos de coleta de amostras também pode influenciar nos resultados do levantamento. Desde outubro, o monitoramento passou a ser realizado a cada duas semanas, em oito estações de tratamento e quatro tubulações. Por receber o esgoto de diversos bairros, as ETEs são estratégicas para apontar tendências de transmissão da COVID-19, mas também apresentam taxa de positividade para o Sars-CoV-2 maior do que as tubulações.
Sequenciamento genético
O artigo publicado traz ainda os resultados do sequenciamento genético dos vírus encontrados no esgoto de Niterói. Em quatro amostras, os pesquisadores conseguiram decodificar o genoma completo do patógeno. A análise confirma a presença da linhagem predominante no estado do Rio de Janeiro no período de abril a agosto, chamada de B.1.1.33 (clado G). De acordo com Marize, o dado reforça a validade dos achados da pesquisa. “O sequenciamento genético de amostras ambientais é difícil porque o vírus sofre degradação. Esse resultado evidencia que o ambiente reflete o que está circulando na população”, pontua a virologista.
O convênio firmado entre a Fiocruz e a Prefeitura de Niterói para realização do projeto tem duração prevista até março de 2021, com possibilidade de renovação. “Nesse momento, continuamos com o monitoramento e pretendemos realizar novos sequenciamentos genéticos, por exemplo, para monitorar a circulação de variantes virais e o reflexo da vacinação”, comenta Marize.
Fonte: Maíra Menezes, do IOC/Fiocruz. Imagem: Freepik.