Outra função estratégica é a transferência de tecnologia, que ocorre quando um acordo possibilita que algum recurso ou produto desenvolvido em outro país seja incorporado pela indústria nacional. “A transferência de tecnologia também tem ajudado a gente a elevar o nosso grau de capacitação científica e tecnológica”, afirma Akira. Segundo ele, o Brasil continua apostando no desenvolvimento autóctone, mas na medida em que aparecem novos produtos, não dá para esperar. “A sociedade exige um produto para ontem”, enfatiza. Na área farmacêutica, o Ministério da Saúde conta atualmente com 86 parcerias de desenvolvimento produtivo (PDPs), envolvendo 18 laboratórios públicos e 43 privados, referentes a 88 medicamentos, 4 vacinas e 13 produtos da área da saúde, de acordo com dados de janeiro de 2017. Um exemplo recente foi o acordo assinado entre Bio-Manguinhos e a empresa britânica GlaxoSmithKline (GSK), em 2012, para a produção da vacina contra a catapora (varicela), que foi acrescentada à dose da tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e passou a integrar o calendário básico de vacinação.

Planejar a longo prazo, mas estar pronto para agir em situações emergenciais: esse é o desafio de uma indústria que deve responder de forma rápida às necessidades epidemiológicas da população. Foi o que aconteceu com o surto de febre amarela, em 2017. “De uma demanda normal de 20 milhões de doses de vacina por ano, só nos três primeiros meses nós já fornecemos mais de 25 milhões de doses”, destaca Akira. Com isso, ele considera que será possível, de forma planejada e escalonada, cumprir a vacinação de todas as áreas que foram incluídas na expansão da cobertura de vacinação, a partir do surto ocorrido em 2017 (Radis 174).

O cenário atual é grave porque aponta para o aumento da dependência tecnológica e a adoção de políticas que afetam principalmente os mais pobres, analisa Laís Costa. Para ela, os cortes intensificam a marginalização de grande parte da população e selecionam quem deve ou não ter acesso a inovações e tratamentos de saúde a partir dos critérios de quem pode pagar e não das condições clínicas. “Os desafios para a área de inovações em saúde são enormes e, infelizmente, o atual governo federal evidencia seu descaso com a ciência e tecnologia”, aponta. Na sua visão, os cortes ameaçam os ganhos decorrentes das políticas adotadas nos últimos anos, como a capacitação tecnológica, o aumento da competência dos produtos públicos e a destinação de recursos para fomentar a produção.

 

Presente ameaçado

Porém, de acordo com a pesquisadora, mesmo com uma trajetória de aumento nos investimentos no setor produtivo da saúde, o Brasil não conseguiu alcançar a escala necessária para superar a dependência tecnológica — o que se agrava com os cortes. “Fomos capazes de tirar do papel e alavancar iniciativas relevantes, mas teríamos que dar continuidade, planejar e sustentar políticas industrias e de inovação voltadas para o SUS”, afirma. Segundo ela, o volume de recursos aportados para o desenvolvimento tecnológico na área de saúde tem sido claramente insuficiente. As políticas de saúde podem ficar reféns de cadeias de valor ditadas pelo mercado, com riscos sociais para toda a população. “Ficamos vulneráveis quando nos deparamos com cenários de crise econômica ou mudanças nas políticas cambiais, ameaçando a continuidade de tratamentos e ações de promoção e prevenção”, explica Laís. Para ela, a dependência tecnológica está ligada à perda de alternativas para a implementação de políticas de saúde efetivas. 

No horizonte, o que está sob ameaça é a garantia do direito à saúde, afirmado pela Constituição de 1988. “Se não tivermos autonomia e capacidade para formular soluções criativas voltadas para resgatar da vulnerabilidade uma população tradicionalmente marginalizada, o projeto civilizatório instituído na Constituição Federal corre o risco de falir de vez”, analisa. Na sua avaliação, a perda de investimentos só agrava um cenário de dependência. “O corte orçamentário proposto pelo governo sinaliza uma decisão política de abandonar o projeto de um sistema universal e de buscar inovações que possam ser compartilhadas pelo conjunto da população”, destaca. Segundo ela, essa postura política faz parte de uma visão que coloca o Brasil de forma subordinada na economia global, atendendo aos interesses dos grandes conglomerados financeiros. 

A saúde impacta positivamente em todo o parque produtivo do país, por isso deve receber investimentos e não cortes, concordam Gadelha, Laís e Akira. “As inovações em saúde podem melhorar os serviços do SUS e beneficiar a população”, afirma Laís. Ela cita tanto a necessidade de enfrentar os desafios estruturais que ameaçam a saúde pública quanto a viabilização de uma agenda de curto prazo, que inclui a disponibilidade de recursos para tratamentos oncológicos, terapias antirretrovirais, imunização da população e desenvolvimento de serviços diagnósticos. Para Gadelha, a promoção do bem-estar social deve ser considerada uma alavanca, um fator propulsor e uma oportunidade para a retomada do desenvolvimento do país. Segundo ele, o Estado, por meio de suas instituições públicas, como a Fiocruz, tem papel estratégico nesse contexto. “O direcionamento pelo Estado é a única forma de garantir que o sistema produtivo e tecnológico esteja a serviço do SUS e da sociedade brasileira”, afirma. Segundo ele, o desenvolvimento sustentável deve ser encarado como uma premissa estratégica para as atividades produtivas em saúde, envolvendo as dimensões econômica, social e ambiental. “Somente promovendo educação de qualidade, investindo em ciência e tecnologia de ponta é que vamos ter um país com futuro, com tecnologias a serviço não só da economia, mas da população em geral”, completa Akira.

 

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Akira Homma fala da importância do PNI para o país. Imagens: Carolina Niemeyer

 

Cérebros atados

A ciência brasileira tem, em seu horizonte, um corte de investimentos que coloca a área com o orçamento mais baixo dos últimos 12 anos. Em carta enviada ao ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, em 27/03, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Associação Brasileira de Ciências (ABC) afirmam que qualquer contingenciamento de verbas não atende às necessidades do país e prejudica o desenvolvimento almejado para a nação brasileira. De acordo com a revista científica Nature (3/4), a redução em 44% no orçamento federal de ciência, tecnologia e inovações deixou os cientistas brasileiros “horrorizados”. Ainda de acordo com a revista, as perdas fazem parte de um conjunto de medidas que feriram a autonomia da ciência brasileira nos últimos anos. Tais mudanças incluem cortes de recursos desde 2014 e a fusão do ministério de Ciência e Tecnologia com a área de comunicações no início do governo Temer, em maio de 2016. Todos esses assuntos estiveram em pauta durante a Marcha pela Ciência, uma mobilização de cientistas e apoiadores ocorrida em 22 de abril, tanto no Brasil quanto em outros países do mundo (Radis 176).

“Qualquer nação que não invista nessa área está sujeita a uma nova condição colonial, porque vai depender da ciência e tecnologia produzida por outras nações”, afirmou em entrevista à Radis a presidente da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), Tamara Naiz. De acordo com ela, os cortes afetam a ciência e a educação nacionais e interrompem um ciclo virtuoso de investimentos na ciência brasileira, presente até 2015, em que houve aumento de financiamento e a expansão do sistema nacional de pós-graduação, do número de bolsas e da produção de ciência, tecnologia e inovação. “Esses aumentos levaram à melhoria da posição do Brasil na produção científica internacional”, aponta. Segundo Tamara, os cortes são fruto da instabilidade política que o Brasil atravessa, mas afetam a continuidade das pesquisas científicas brasileiras, desde o custeio do dia a dia até o pagamento de bolsas. “Não é razoável que o governo contingencie quase metade do orçamento da ciência brasileira”, critica. (LFS)

 

Fonte: Luiz Felipe Stevanim / Revista Radis

 

 

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