Seis meses após o Brasil ter notícia do pior surto de febre amarela dos últimos 80 anos, o impacto na natureza da doença de origem humana começa a ser mensurado. Os sobreviventes de guariba ou bugio-ruivo, uma espécie de macaco antes frequente, se encontram hoje como náufragos em florestas insulares, isolados num oceano de devastação. Na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala, em Caratinga, leste de Minas Gerais, no epicentro do surto, restaram cerca de 12 dos mais de 500 guaribas. A população atual não tem tamanho e distribuição para continuar. Se não se reorganizarem, lamentam cientistas, vão desaparecer.

— Trata-se de um desastre com magnitude para afetar a dinâmica da Mata Atlântica, numa das partes do país onde ela foi mais devastada (Minas é o segundo estado que mais desmatou o bioma entre 2015 e 2016) — afirma o primatologista da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) Sérgio Lucena, que há mais de 30 anos estuda os primatas do Vale do Rio Doce e regiões vizinhas.

Com cerca de mil hectares, a reserva de Caratinga é uma espécie de ilha, a maior de um arquipélago de fragmentos do que restou da Mata Atlântica dessa parte do Vale do Rio Doce. E a febre amarela fez de Caratinga um microcosmo de um fenômeno de magnitude sem precedentes no bioma. A febre dizimou os macacos em meses. Mas a recuperação pode consumir décadas, alertam os cientistas.

— Caratinga se tornou cenário de um experimento que jamais gostaríamos de ter de observar. O guariba, uma espécie de importância para a dispersão de sementes, praticamente desapareceu. A febre amarela veio depois de uma seca severa. Há sinais de mudança climática. Como a própria floresta vai se comportar? Na Mata Atlântica, animais, árvores e rios, tudo está ligado. Não sabemos o que vai acontecer. É um processo de décadas — frisa a primatologista americana Karen Strier, professora de antropologia da Universidade Wisconsin-Madison (EUA) e presidente da Sociedade Internacional de Primatologia.

O desastre ambiental causado pela febre amarela provocou tamanha apreensão internacional, que o projeto sobre Caratinga ganhou o apoio da National Geographic Society e do Primate Action Fund, nos EUA. Karen estuda desde 1983 os muriquis-do-norte de Caratinga (Brachyteles hypoxanthu). Considerada a maior especialista do mundo no muriqui, um dos 25 primatas mais ameaçados da Terra, ela está preocupada agora com a sobrevivência dos guaribas (Alouatta guariba), também chamados barbados ou bugios. De todos os macacos, eles são os mais sensíveis à febre amarela.

Dos cerca de 350 muriquis de Caratinga, onde vive a maior população conhecida da espécie, cerca de 11% desapareceram desde setembro. Porém, um levantamento preliminar dos bugios feito pela primatologista Carla Possamai só revelou 12 animais em quatro grupos.

 

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Em Caratinga, leste de Minas Gerais, a população de macacos
foi dizimada pela doença. Imagem: Divulgação/ Carla Possamai

 

Canto solitário na mata

Encontrá-los não foi fácil, mesmo para Carla Possamai, que há 16 anos percorre as matas de Caratinga e é considerada uma das primatologistas com maior experiência em campo. Após dias de procura na mata, só quando a chuva começou, no início de maio, ela ouviu o canto solitário e distante de um animal. Seu chamado ficou sem resposta.

— Diz a tradição que os barbados cantam para a anunciar a chuva. Fazia parte da cultura local ouvir o canto da chuva deles. Mas agora só há silêncio — diz Carla, do Muriqui Instituto de Biodiversidade.

Ela localizou os animais, em grupos pequenos, dessa forma inviáveis:

— Os macacos barbados são sociáveis, vivem em grupos familiares onde uns cuidam dos outros. Se não conseguirem se organizar, dificilmente a espécie vai sobreviver na área — explica ela.

Sergio Lucena salienta que a teoria de que a febre amarela silvestre surge em ciclos de sete a oito anos, porque esse seria o prazo em que a população de macacos se recuperar, precisa ser revista.

— O bugio tem um ciclo de vida lento e em sete anos não temos nem duas gerações. Para recuperar uma população de 500 a partir de 12 animais serão necessárias décadas — observa Lucena, que desde os anos 80 estuda os bugios de Caratinga.

Karen e Lucena destacam que a maioria dos estudos sobre recuperação da população de animais foi realizada na Amazônia, onde a extensão de mata contínua é muito maior.

— A fragmentação a que foi reduzida a Mata Atlântica faz toda a diferença. Em fragmentos muito pequenos, houve extinção local. E os animais que restaram estão separados por grandes distâncias. Para uma espécie que vive em grupos, isso pode ser o fim da linha — explica Lucena.

Ele também está preocupado com a sobrevivência do sagui-da-serra (Callithrix flaviceps), uma espécie em extinção que só existe entre o leste de Minas à região serrana do Espírito Santo. A RPPN Feliciano Miguel Abdala era um de seus santuários. Pela primeira vez, se soube que o vírus é letal para esses animais. No levantamento, Carla não encontrou sagui algum.

— A febre amarela pode ter levado essa espécie ao limite, mesmo que tenham restado alguns animais — frisa Lucena.

Esta semana, com Carla, ele e Karen voltam à Caratinga. Para ela, é como se a História regredisse.

— Infelizmente, o meio ambiente tem tido retrocessos e a febre amarela trouxe mais um. Há 35 anos chegamos à Caratinga para lutar pelos muriquis. Havia cerca de 50 então. E os bugios eram abundantes. Agora, quando celebrávamos o aumento da população de muriquis, o bugio é dizimado. É um recomeço. Esperamos que, no fim, traga um aprendizado positivo para seres humanos e animais — salienta Karen.


Fonte: Ana Lúcia Azevedo / O Globo

 

 

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