Condecorado pela organização internacional Vaccination como uma das 50 pessoas mais influentes na indústria de vacinas no mundo, o presidente do Conselho Político e Estratégico de Bio-Manguinhos (unidade produtora de imunobiológicos da Fiocruz), Akira Homma, tem muito boa memória para datas, nomes e cargos das pessoas que marcaram a sua carreira. Desfia décadas de história com a simplicidade de quem conta um dia cotidiano de trabalho. “Tenho carteira assinada há 60 anos”, diz Akira, que ajudou a fundar e presidiu Bio-Manguinhos de 1976 a 1989. Ele é também ex-presidente da Fiocruz, função que exerceu por alguns meses, entre 1989 e 1990, interrompida por imposição do governo Collor. Casado e com um filho, o descendente de imigrantes japoneses que vieram trabalhar nas plantações de café se tornou médico veterinário e contribuiu decisivamente para a erradicação da poliomielite e a eliminação do sarampo no país. Seus relatos vão do passado ao futuro, discutindo novas tecnologias e analisando potencialidades da indústria de imunobiológicos diante da crise atual. Arrisca previsões, sem perder a precisão e a parcimônia orientais.

 

Como o senhor despertou para a ciência e tecnologia? 

Não é que eu tenha descoberto minha vocação, foram as oportunidades que eu tive e eu não tive dúvida em aproveitar. Fui estagiário — e depois funcionário — ndo Instituto Adolfo Lutz, o Laboratório de Saúde Pública do Estado de São Paulo. Depois de um curso da Organização Panamericana de Saúde (Opas), que incluía metodologias em cultura de tecidos, fui convidado a trabalhar no Centro Panamericano de Febre Aftosa, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Eu tinha 22 anos, ainda não estava formado. Nesse período, fiz o meu curso universitário em Medicina Veterinária na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. Pegava onze conduções por dia. A vida não era fácil, mas aquilo nunca me desanimou.

 

Quem foram as pessoas que se tornaram suas referências na carreira? 

O Hermann Schatzmayr foi um dos grandes apoiadores da minha carreira. Ele organizou o laboratório de virologia na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), no departamento de Biologia, chefiado pelo Luiz Fernando da Rocha (Radis 130), e eu enveredei pela virologia humana. Poliomielite era tema importantíssimo na época. Nós fizemos o primeiro estudo controlado da eficácia da vacina da poliomielite, oral, de vírus atenuados. Em 1969, com ajuda dele, consegui uma bolsa de estudos da Opas na área de virologia no Baylor College of Medicine, em Houston, Estados Unidos. Lá fui incorporado à equipe que desenvolveu um equipamento para concentrar vírus de água, que ficou entre as cinco melhores invenções do ano. Um dos líderes do grupo, o professor Craig Wallys, disse para mim: “Akira, você é um estudante aqui dentro, não podemos colocar seu nome na patente, mas reconhecemos o seu trabalho e vamos pagar uma viagem ao primeiro congresso internacional de virologia em Budapeste”. Conheci a Europa em 1971. E essa bolsa serviu para abrir minha visão acadêmica e de pesquisador.

 

Como foi trabalhar em um país mais avançado tecnologicamente?

Naquela época, Budapeste ainda era, vou te dizer, meio pobrezinha (risos)... Em 1972, eu tinha a opção de ficar por lá ou voltar. E eu voltei para a Ensp por causa da família. Defendi aqui a minha tese de doutorado, em 1974, com o professor Guilherme Rodrigues da Silva, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. A situação naquela época não era fácil, havia a inflação, que corroía o salário. Depois que eu voltei de Houston, o salário era tão ruim que eu tinha que fazer bico para poder sobreviver — e muita gente fazia isso. Consegui um lugar no laboratório de análises clínicas da Santa Casa para dar plantão de sábado para domingo. 

 

O senhor no passado abriu mão de continuar trabalhando na Opas e na indústria farmacêutica, onde era bem melhor remunerado. O que o motivou? 

Eu saí e voltei da Fiocruz duas vezes. A primeira foi em 1974, quando estava na Bayer. Eles me convidaram para organizar um laboratório de produção de vacina contra febre aftosa em Belford Roxo. Fui estagiar no laboratório de produção desta vacina em Colônia, na Alemanha. Tive o aprendizado de produção de vacinas para implementar aqui. Ofereceram três a quatro vezes tudo que eu ganhava e era um desafio muito grande, organizar um superlaboratório. Precisei aprender alemão. Eu estava muito bem, mas em 1975 a fábrica de Belford Roxo foi fechada porque o mercado brasileiro passou a ter produção excessiva dessa vacina. A Bayer então me ofereceu ir trabalhar na Espanha ou na Argentina. Foi quando Guilardo Martins Alves e Vinicius Fonseca [pesquisadores e ambos ex-presidentes da Fiocruz] estavam reorganizando a Fundação Oswaldo Cruz. Guilardo foi enviado a várias instituições como o Instituto Pasteur para fazer prospecção e “repovoar” a Fiocruz.  Em 4 de maio de 1976 foram criadas as unidades de Bio-Manguinhos e Farmanguinhos. Eu vim e passei a ganhar um quarto do que eu ganhava na Bayer.

 

E da segunda vez? Por que o senhor retornou?

Em outros tempos eu diria que é uma cachaça, mas eu não vejo mais ninguém bebendo cachaça — só vinho, uísque, cerveja artesanal (risos). Mas o fato é que você está aqui pela Saúde e porque gosta. O que você faz tem impacto, você vê resultados. Não sei se ganhar muito dinheiro, trabalhar só por dinheiro, é gratificante. Não posso falar porque minha vida sempre foi essa. Estou fazendo uma coisa que eu gosto. Gosto muito do que eu faço. A segunda vez em que fui morar no exterior, com família, e voltei, foi depois que acabei me tornando presidente da Fiocruz. Isso foi em 1989, quando Sergio Arouca foi candidato a vice-presidente da República na chapa de Roberto Freire. Ele teve que deixar a presidência da Fiocruz para se candidatar e eu assumi no lugar dele. Neste período, organizamos a primeira eleição para presidente da Fiocruz e eu ganhei no primeiro turno, de uma lista que tinha cinco candidatos. Mas não fui nomeado pelo presidente Fernando Collor, pois ele não desejava nomear ninguém da lista tríplice. Ele não quis aceitar a decisão da instituição. Então, fui concidado para coordenar o Programa Nacional de Autossuficiência em Imunobiológicos (Pasni), do Ministério da Saúde, em Brasília, e depois fui selecionado para o cargo de assessor regional de vacinas da Opas-OMS nos Estados Unidos.

 

O senhor viveu a epidemia de meningite, que acometeu o país no auge da ditadura militar, na década de 70. Como não havia vacina, não se divulgou a gravidade da situação. Como foi acompanhar esse episódio nos bastidores? 

Essa foi uma página triste da história da Saúde Pública no país. A epidemia de meningite meningocócica começou no início da década de 70, mas as autoridades sanitárias da época tentaram ocultar. A gente sabia que havia grande número de mortes. O Carlos Ossamai, professor de Epidemiologia da Ensp, foi uma pessoa muito importante na divulgação desses números. Ele começou a organizar os dados na diretoria de Epidemiologia do Ministério da Saúde e o governo entendeu que teria que divulgá-los. Só então veio a decisão de comprar imediatamente a vacina da meningite, e ao mesmo tempo de organizar uma estrutura laboratorial aqui. A epidemia encontrou o país sem nada, sem nenhuma instituição em condição de dar respostas. Daí também resultou a reestruturação da Fiocruz. Seria importante tentar resgatar essa história sobre a comunicação na época da ditadura militar, para não acontecer outras vezes. Em 1976, foi pela primeira vez produzida uma vacina humana com biorreator. Até ali só se fazia em cultura estática, em garrafa. E pela primeira vez tínhamos uma vacina de componente de bactéria, um polissacarídeo. Tinha muita tecnologia envolvida. Na compra da vacina, veio junto o laboratório piloto de vacinas bacterianas, a transferência de tecnologia de todo o processo produtivo. Bio-Manguinhos se fortaleceu também em outro episódio, com a transferência de tecnologia da vacina de sarampo e poliomielite, que ocorreu no contexto do Acordo Básico de Ciência e Tecnologia Brasil-Japão.

 

Por que o setor de imunobiológicos é prioritário para o país? 

Assim como a epidemia de meningite pegou o país de calças curtas, nós também tivemos desabastecimento de vacinas na década de 1980, em 84 ou 85, quando uma multinacional tinha praticamente todo o mercado de produção de vacinas e soros. Ela fechou a atividade de produção de vacinas porque o Ministério da Saúde começou a apertar o controle de qualidade. O laboratório não atendia as especificações. Simplesmente fechou. Nos jornais da época você vai ver páginas inteiras falando da falta de soro antiofídico, cujo produto nem era passível de importação, já que os venenos de cobra têm especificidades regionais. Produzir vacina é uma atividade de alto custo fixo. Por isso é preciso ter escala de produção, para diluir os custos. E na época você tinha uns dez laboratórios nacionais, a maior parte produzindo vacina antirrábica e soros. O Ministério da Saúde [com a criação da Anvisa] começou a exigir mais qualidade dos produtos.

 

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Akira Homma em alguns momentos da entrevista. Imagens: Carolina Niemeyer

 

Existe hoje o problema de desabastecimento?

Quando acontece uma epidemia e aumento da demanda de forma repetina, existe sim. Faltam produtos inclusive no mercado internacional, como acontece hoje com a vacina da febre amarela. Em um país continental como o nosso, com 200 milhões de habitantes, não se justifica não ter competência nacional em produtos estratégicos como vacinas, privada ou pública. Mas, no Brasil, o privado nunca quis entrar porque a área é muito complexa e exige alto investimento em instações e infraestrutura. Se não tivéssemos os laboratórios públicos atuando, os produtos seriam muito mais caros.

 

Qual a diferença entre autonomia e soberania? De que o país precisa em termos de imunobiológicos, kits de diagnóstico e biofármacos?

A população precisa ter garantia de que vai ter produtos essenciais para sua proteção. Isso pode ser feito de várias formas. Uma é importar — e países pequenos usam essa estratégia. Países grandes como o Brasil têm que buscar competência científica e tecnológica para responder às demandas. Não queremos a soberania da produção de imunobiológicos e nem a produção local de todas as vacinas. Queremos sim produzir internamente aquelas que são absolutamente essenciais, cerca de uma dúzia de produtos. Isso pode ser feito por investimento público ou privado. Mas nós temos que ter competência para isso. O fato é que, no Brasil, o privado não compareceu por causa dos riscos que essa atividade apresenta. Nessa atividade, as novas tecnologias têm que ser incorporadas de forma permanente, porque senão ficam obsoletas rapidamente. Nós conseguimos sobreviver nesse setor por um instrumento muito importante, que é o uso do poder de compra do Estado para fazer incorporação de novas tecnologias de produção. Nós sobrevivemos porque somos públicos.

 

Por que em um momento de crise econômica continua sendo essencial investir em vacinas e em saúde?

Os trabalhos de Bio-Manguinhos têm um valor intangível. Nossas vacinas serviram para eliminar a poliomielite no país. Acabou. Ninguém fala mais disso, mas continuamos trabalhando porque você tem que ter a manutenção. O sarampo também foi eliminado, e demos importante contribuição. Por isso nós dizemos que “tem um pouco de Bio-Manguinhos em cada brasileiro”. A gente explora muito pouco a valoração disso. A qualidade de vida que a gente gera.

 

Bio-Manguinhos é voltada para o mercado?

Nós não vamos ao mercado, mas Bio-Manguinhos precisa ser autossustentável para ter novos horizontes e alternativas. Autossustentabilidade para Bio-Manguinhos é atender às demandas de saúde pública. Nossa proposta é a saúde pública. Quando eu falo em mercado, é no sentido de que somos 200 milhões de pessoas, é no sentido da demanda da população. Que é o SUS. Se a gente conseguir atender bem o SUS, com produto de qualidade, com tudo que é necessário, evidentemente estaremos tendo o retorno correspondente. Nós não visamos lucro.

 

O Congresso Interno da Fiocruz autorizou Bio-Manguinhos a se tornar uma empresa pública. Mas não há risco de privatização?

É preciso dizer que a atividade de Bio-Manguinhos é uma atividade industrial. Nós temos mil e quinhentas pessoas lá dentro. Nosso pessoal tem conhecimento e criatividade em várias tecnologias de desenvolvimento e produção de imunobiológicos. Nossa proposta é tornar Bio-Manguinhos uma empresa pública, com a ideia de que vamos conseguir agilidade, com flexibilização de processos. Não existe nenhum risco de privatização. Se discutir com quem entende, verá que nunca será privatizada. Porque, sem o guarda-chuva do Estado, nunca seremos competitivos. As grandes multinacionais, todas elas, investem 20% de suas receitas de bilhões de dólares em novas tecnologias e na compra de laboratórios e patentes. Bio-Manguinhos investe 20 milhões de reais por ano em desenvolvimento de novos produtos, o que é muito pouco. Se for privatizado, em 5 anos acaba, sem o poder de compra do Estado.

 

É possível o desenvolvimento de novas vacinas em curto e médio prazo para as novas epidemias, de zika e chikungunya? Qual delas tem mais chance de ser desenvolvida primeiro?

Será possível sim. Estamos trabalhando e buscando parcerias. Estamos juntando peças e trabalhando de forma acelerada para dar as respostas que o país precisa. É difícil dizer para qual delas será desenvolvida uma vacina primeiro. Falta ainda conhecimento profundo sobre a doença zika e sobre o vírus. As formas graves de zika podem ser ligadas à sensibilização por anticorpos. Se for assim, não sabemos nem se a vacina será a forma de prevenção mais eficaz. Quero reiterar que nós temos uma maneira eficaz de combate a zika, chikungunya e dengue: é o combate ao vetor. Não estou retirando a responsabilidade que nós temos com o desenvolvimento de kits de diagnósticos e vacinas. Estou dizendo que, por favor, não joguem toda a responsabilidade em cima da gente.

 

Quais são as novas tecnologias e tendências para o setor farmacêutico e de imunobiológicos? A nanotecnologia está entre elas?

A nanotecnologia é uma delas. Mas existem outras tecnologias. O conhecimento profundo da interação entre o vírus e a célula humana — por exemplo no caso do HIV — pode trazer um salto. O anticorpo de pessoas infectadas, mas que não têm a doença, pode ser um dos caminhos para desenvolver uma vacina contra o vírus HIV. A vacina contra influenza (gripe) é a que mais possivelmente será modificada, e eu espero nos próximos anos ver uma vacina da influenza universal. Novas vertentes científicas, como a nanotecnologia, poderão mudar todo o cenário atual. Você pode colocar em um dispositivo minúsculo diferentes antígenos e ativar a liberação gradual de forma que seu organismo fique continuamente desenvolvendo anticorpos.

 

Que valores, aprendidos por você na família, ou na sua vivência, devem orientar os mais novos? O que você diria para a nova geração de gestores, pesquisadores, estudantes?

Estudar. Estudar e estudar. Tem que gostar do que se faz e fazer gostando. E persistir. Como Oswaldo Cruz, no início do século passado, dizia: “Não esmorecer para não desmerecer”. As palavras dele são super atuais. E tem caminhos. A Saúde Pública precisa de mais gente.

 

Fonte: Elisa Batalha / Revista Radis

 

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